quarta-feira, novembro 08, 2017

Clássicos da modernidade para a atualidade


Ciclo de palestras organizado pela Coordenação do Livro e Literatura da SMC discute a modernidade em 28 clássicos na Feira

Jorge Luis Borges e Ficções

Karl Marx e o Manifesto Comunista

Friedrich Nietzche e Assim Falou Zaratustra


Virginia Woolf e Mrs. Dalloway

Por Luiz Gonzaga Lopes

A modernidade em sua concepção histórica partiu dos ideiais iluministas do final do século XVIII, ganhou corpo com o romance moderno no século XIX e teve sua experiência mais radical a partir da segunda metade do século XX, quando os sentimentos existenciais, a perda de referências familiares, o urbano falando mais alto do que o rural e o tecnológico se sobrepondo às relações humanas. A prefeitura de Porto Alegre, por meio da Coordenação do Livro e Literatura, da Secretaria Municipal da Cultura (SMC) programou, para a 63ª Feira do Livro de Porto Alegre, do período entre 6 a 19 de novembro, o ciclo de palestras Clássicos da Modernidade. Os encontros estão sendo realizados diariamente, entre 18h30min e 20h30min, na sala O Retrato, do Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, (
rua dos Andradas, 1223).


Conforme o coordenador do Livro e Literatura da SMC, Sergius Gonzaga, a industrialização e a urbanização do ocidente, a partir da segunda metade do século XIX, radicalizou a experiência da modernidade. Os pilares que sustentavam as tradições desmoronaram. Ao mesmo tempo, o novo homem tinha diante de si uma abundância de opções, de liberdade de ser e existir. "Assim, desamparo e euforia, perda e possibilidade de triunfo, solidão e participação nos rituais urbanos alternavam-se em uma existência para sempre problemática. Estava nascendo o nosso tempo", analisa Sergius. Ao todo, são 20 obras e temas consideradas clássicas neste período de quase dois séculos e meio. Nos dois primeiros dias, segunda e terça, foram abordados os seguintes temas: “A experiência da modernidade”, com Sergius Gonzaga (Ufrgs); “A democracia americana” (Toqueville), com Rodrigo Lemos (UFCSPA); “Madame Bovary” (Flaubert), por Altair Martins (escritor/PUC); e “A morte de Ivan Ilicht” (Tolstói), por João Armando Nicotti (escritor).


As discussões têm como pano de fundo, obras literárias que moldaram o pensamento moderno em suas várias correntes, com autores como Karl Marx, Flaubert, Nietzsche, Eça de Queirós, Sigmund Freud, Virginia Woolf, Sartre, Camus, Faulkner, Kafka, Jorge Luis Borges, Italo Calvino e outros mestres da literatura universal. Nesta quarta, dia 8, os encontros são: 18h30min  “Assim falou Zaratrustra” (Nietzsche), por Felipe Karasec (professor); 19h30min – “A dama e o cachorrinho” (Tchekhov), por Denise Sales (Ufrgs). Para dar um gostinho, deixo os leitores com um trecho do Zaratustra, de Nietzsche:


O homem se acha no meio de sua rota, entre animal e super-homem, e celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã./ Então aquele que declina abençoará a si mesmo por ser um que passa para lá; e o sol do seu conhecimento permanecerá no meio-dia/ ‘Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem'” 

Nietzsche, Assim Falou Zaratustra,
 

São dois encontros por dia, sempre às 18h30min e às  19h30min. Veja quais serão os próximos encontros e programe-se:

Clássicos da Modernidade
Quarta-feira, 8
18h30 
 Assim falou Zaratrustra (Nietzsche), por Felipe Karasec (professor)
19.30 - A dama e o cachorrinho (Tchekhov) Denise Sales (Ufrgs)
 
Quinta-feira, 9
18h30 - Os Maias (Eça de Queirós), por Maria da Glória Bordini (Ufrgs)
19h30 - O manifesto comunista (Marx), por Felipe Pimentel (historiador/psicanalista)
 
Sexta-feira, 10
18h30 - A origem das espécies (Darwin), por Luis Roberto Goldim (Ufrgs)
19h30 - Poemas (Kaváfis), por Pedro Gonzaga
 
Sábado, 11
18h30 - A interpretação dos sonhos (Freud), por Liane Pessin (Unisinos)
19h30 - Mrs.Dalloway (Virginia Woolf), por Ricardo Barberena (PUC)
 
Segunda-feira, 13
18h30 - O estrangeiro (Camus), por Léa Masina (professora)
19h30 - A cavalaria vermelha (Babel), por Luís Augusto Fischer (Ufrgs)

Terça-feira, 14
18h30 - Homem invisível (Ralph Ellison), por Luiz Mauricio Azevedo (Ufrgs)
19.30 - O som e a fúria (Faulkner), por Gustavo Mello Czekster (escritor)
 
Quarta-feira, 15
18h30 - U.S.A. (John dos Passos), por Antonio Hohlfeldt (PUC)
19h30 - Os demônios (Dostoiévski), por Eduardo Wolf  (filósofo)
 
Quinta-feira, 16
18h30 - A era da inocência (Edith Warton), por Sandra Maggio (Ufrgs) 
19h30 - A náusea (Sartre), por Nelson Boeira (Ufrgs)
 
Sexta-feira, 17
18.30 - Lolita (Nabokov), por Lúcia Serrano (psicanalista)
19h30 - O arquipélago Gulag (Soljenítsin), por Voltaire Schilling (historiador)
 
Sábado, 18
18h30 - Ficções (Borges), por José Francisco Botelho (escritor e tradutor)
19h30 - O segundo sexo (Simone Beauvoir), por Maria do Carmo Campos (Ufrgs)
 
Domingo, 19
17h - O processo (Kafka), por José Hildebrando Dacanal (escritor)
18h - As cidades invisíveis (Calvino), por Márcia Ivana Lima e Silva (Ufrgs)



segunda-feira, agosto 29, 2016

A Arca Francesa




Depois da morte de Andrei Tarkovsky não existe outro cineasta no mundo capaz de causar a sensação que Aleksandr Nicolaievitch Sokurov (que retratou o mestre, diretor de Solaris e Nostalgia, em Melancolia de Moscou) causa ao tratar de temas banais como a relação entre pai, mãe e filho, grandes líderes mundiais ou personagens literários e principalmente criar uma linguagem lírica, que atravessa o tempo para tratar de grandes museus do mundo, a saber o Hermitage, em São Petersburgo, com o inigualável plano-sequência de 2002, com mais de 3 mil figurantes, “Arca Russa” e agora com seu “Francofonia – Louvre sob Ocupação”, que traz toda a saga de dois homens, um alemão e outro francês, para manter intactas, à prova de saque nazista as obras do Louvre e de outros grandes museus da França. Conde Franziskus Wolff-Metternich (Benjamin Utzerath) e Jacques Jaujard (Louis-Do de Lencquesaing) são dois homens resistindo à sina da ocupação nazista na França, no verão de 1940. Por isso, novamente o sentido bíblico de Arca, de dois homens sendo os Noés do século XX e salvando a arte de 6 mil anos antes de Cristo durante a Segunda Guerra Mundial. Por isto, o batismo deste texto como A Arca Francesa.

Como é um artesão da película (seja ela já digital), Sokurov não escolhe o caminho convencional. Desta vez, a narrativa é iniciada por fotos ligadas ao início do século XX, e principalmente pela constatação que dois grandes nomes da literatura russa: Anton Pavlovitch Tchekhov e Liev Tolstoy estão mortos e não respondem a estímulos. Sokurov usa três narradores. Ele mesmo e outros dois com câmera subjetiva e faz um apanhado do início daquele século, com a Primeira Guerra Mundial e outros fatos até chegar à ocupação nazista na França. A metalinguagem do filme é assegurada por um momento em que Sokurov no seu apartamento conversa por skype com um capitão de um navio, Dirk, que leva obras de arte por um mar agitado. Enquanto conversa com este capitão, algumas imagens do filme aparecem no copião. O navio atravessando o mar revolto é o gancho para falar como muitas das obras chegam ao Louvre, nos séculos anteriores. O Louvre é o personagem principal do filme, assim como Metternich e Jaujard. A pergunta do narrador dá a clareza à grandeza deste museu e do museu retratado em Arca Russa: “O que seria da França sem o Louvre e Leningrado sem o Hermitage?”

Jaujard e Metternich pelos atores Louis-Do de Lencquesaing e Benjamin Utzerath 

Ao som da música de Gustav Mahler, “Kindertotenlieder”, o narrador onírico, onisciente, o fantasma do Hermitage, agora é Sokurov conversando com seu filme, a fantasma Marianne  (Johanna Korthals Altes) bradando pela liberdade, igualdade, fraternidade como metáfora francófona e Napoleão Bonaparte (Vincent Nemeth) dizendo que o museu é ele, que as obras são ele, que todas elas são resultados de suas campanhas vitoriosas. O drone que faz imagens aéreas de Paris para encontrar o Louvre dá uma sensação de leveza à obra do cineasta russo, que precisa dar toda a dimensão do Louvre, da Segunda Guerra, como no momento em que trata do Cerco de Leningrado, que durou um ano, com corpos espalhados pela cidade, sendo abandonados pela rua, jogados em grandes valas, o importante era resistir e sobreviver. Didaticamente, o cineasta explica como foi erguido o Louvre desde o século XII e com quais intenções até o projeto de Pierre Lescot no século XVI.

O colaboracionismo do fantoche nazista, o Marechal Pétain e o governo de araque de Vichy, que não foi ocupado pelos nazistas, também recebe atenção das lentes e da recuperação de imagens de Sokurov. As mais diversas metáforas ligadas aos quadros, como a "Monalisa", de Da Vinci, a Vitória de Samotrácia, uma escultura assíria de centenas de anos antes de Cristo, a "Jangada da Medusa", de Theodore Gericault, aparecem nesta polifonia sokuroviana, na qual o passado e o presente se misturam, como naquela Arca Russa de 2002. A preocupação do narrador ante à ocupação nazista é “Como se comportará o vencedor diante do centro da cultura mundial?”. Voltando ao passado, o Napoleão fantasma que vaga pelo Louvre se pergunta: “Porque eu fiz a guerra? Pela arte”.

Alexsandr Sokurov e a "Jangada da Medusa", de Gericault


Ao falar de esculturas assírias e da sala egípcia, Sokurov trata das diferenças entre a cultura oriental e a ocidental. Ele se rende aos retratos, tão presentes no Louvre, com closes em alguns dos quadros, fazendo a seguinte pergunta: “Porque os retratos são tão importantes na cultura europeia, considerando que são inexistentes na cultura muçulmana?” Uma obra que nos enche de interesse pelo que ainda não compreendemos da arte e que nos auxilia a enxergar melhor o que está por trás da grandeza do Louvre, que começou a ser projetado no final do século XXII e teve suas portas abertas em 10 de agosto de 1793, poucos anos depois da Revolução Francesa. Para terminar este texto, deixo o meu leitor com o trecho do ensaio “A Proximidade de um Mestre”, do saudoso Leon Cakoff, do livro “Alexsandr Sokúrov” (Mostra/Cosac Naify, 2002), com organização de Álvaro Machado. Neste trecho, ele se refere à Arca Russa, mas poderia estar se referindo a esta Arca Francesa:

“O diretor fala de política no sentido direto da palavra, o que é muito valioso para recompor os delírios e matar as charadas sutilmente construídas nos diálogos sobre os tiranos do século XX que se converteram em personagens dos seus filmes – Hitler em ‘Moloch’; Lênin em ‘Taurus’; e um projeto sobre Hiroito (O Sol): ‘Quanto mais infeliz uma pessoa é, mais poder ela quer’. Divaga sobre a natureza humana e sua resistência permanente contra a barbárie: ‘Há gente que está pronta para morrer, mas que não está pronta para resistir e sobreviver, para entrar na arca...’. Aqui começam todas as metáforas sobre a Arca de Noé que Sokúrov foi transferindo para os sentidos de sua Arca Russa: ‘Minha arca é um símbolo de sobrevivência, sou um partisan do entretenimento com o cinema’ (...). E ele nos oferece uma arca cheia de tesouros e recordações, com mais desafios e armadilhas, num ciclo histórico perpétuo.”

Para aqueles que se deleitaram com as imagens e o conteúdo histórico de ‘Arca Russa’, como foi o meu caso, que fui a São Petersburgo em 2012 para passar 6 horas e meia imerso no Hermitage (lastimando não ter feito uma segunda e uma terceira visita a um dos museus mais significativos do mundo), posso dizer que “Francofonia” é filme obrigatório, por ser uma declaração de amor ao Louvre, à arte e aos homens que ajudaram a salvar suas obras. Quem visita o Louvre hoje não tem como saber que o museu não teria a maior parte das suas quase 400 mil obras, não fosse o empenho de Jaujard e a conivência de Metternich em evitar o saque nazista. Assistam ao filme enquanto está em cartaz nos cinemas brasileiros. Em Porto Alegre, o filme de Sokurov está sendo exibido nos cinemas Guion e Espaço Itaú.  


FRANCOFONIA
Direção: Aleksandr Sokurov
Elenco: Louis-Do de Lencquesaing, Vincent Nemeth, Benjamin Utzerath, Johanna Korthals Altes, Jean-Claude Caër y Andrey Chelpanov
Fotografia: Bruno Delbonnel
Montagem: Hansjörg Weißrich
Música: Murat Kabardokov
Duração: 88 minutos
Ano: 2015
Gênero: Drama / Documentário
Produção: França / Alemanha / Holanda
Distribuição: Imovision

PRINCIPAIS FILMES DE SOKUROV

Melancolia de Moscou – 1987

A Pedra - 1992

Mãe e Filho – 1997

Moloch - 1999

Taurus - 2001

Arca Russa – 2002

Pai e Filho – 2003

O Sol – 2005

Aleksandra - 2007

Fausto – 2011

Francofonia – Louvre sob Ocupação – 2015

quinta-feira, julho 28, 2016

Um Negro Augusto


Filmes sobre palhaços são normalmente mais tristes do que alegres. Só para citar dois exemplos, o documentário "I Pagliacci", de Federico Fellini, e "O Palhaço", de Selton Mello. Em "Chocolate", filme francês de Roschdy Zem, a situação não é diferente.  Antes de começar a crítica propriamente dita, vou explicar o título que dei a este texto. Augusto é um termo do latim que designa aqueles que são veneráveis, sublimes, elevados. O título era dado aos imperadores romanos. Em alemão, o termo significa alguém em situação ridícula, risível. O negro augusto é Omar Sy e também Rafael Padilla, o personagem que ele interpreta, o palhaço Chocolate, Augusto na denominação dos palhaços, mais extravagante, provocador, mas ao mesmo tempo marginalizado ou submetido pelo Branco, no caso do filme inspirado por uma história da vida real, George Footit (James Thiérrée). A dupla Footit e Chocolate marcou época na França da virada do século XIX para o século XX.


A história do filme "Chocolate" é desta augustez de Rafael Padilla (um Omar Sy que já rala no cinema desde 2001, mas que desde "Intocáveis", em 2011, faz uma média de dois filmes por ano, sempre com atuações marcantes), um jovem negro que nasceu em Cuba em 1868 e foi vendido como escravo ainda criança. Na França, ele é encontrado por um palhaço que o integra ao circo. Padilla foi o primeiro artista circense negro na França, fazendo estrondoso sucesso no final do século XIX. Esta animada cinebiografia feita da maneira mais convencional possível pega o espectador naquilo que sempre mais nos toca, a ascensão e queda de um personagem.  O filme foi adaptado pelo diretor Roschdy Zem, Cyrill Gely e Olivier Gorce, do livro “Chocolat Clown Nègre – L’histoire oubliée du premier artiste noir de la scène française”, escrito por Gérard Noiriel.



Apresentado como um primitivo canibal africano no Circo Delvaux, do casal Delvaux (Frédéric Pierrot e Noémie Lvovsky), Kananga como Padilla é chamado (ninguém sabe o seu real nome) é um fanfarrão, apostador e divertido artista de circo, mas sem grandes chances de brilhar até que o veterano, famoso, mas decadente palhaço George Footit (James Thiérrée) o observa numa apresentação do Delvaux pelo interior da França e vê o potencial para que ele seja o seu ajudante, a sua escada para gags, o seu palhaço Augusto. Ele treina Kananga para fazer números com ele e aí vão os primeiros méritos para o diretor Roschdy Zem pela seleção de Thiérrée que, além de belo ator, tem um trabalho corporal fabuloso, muito inspirado em Chaplin e outros clowns e fez a preparação de palhaço com Omar Sy e a criação das coreografias. Foi um cocriador do filme. Bueno, seguindo a análise e a história, os dois acabam fazendo o número e o circo passa a lotar. Os conflitos começam a aparecer, bem como a ambição de Footit de voltar a Paris por cima da carne seca, como dizemos por aqui. O diretor do Cirque Noveau de Paris, Oller (Olivier Gourmet) faz o convite para que eles apresentem seu número e Kananga deixa para trás os amigos mambembes e também a namoradinha bailarina Camille (Alice de Lencquesaing, com ares de Natalie Portman).


O sucesso é instantâneo e enquanto Footit é um palhaço que nunca ri, como normalmente o são os palhaços, Kananga vira Chocolate, ganha muito dinheiro, passa a esbanjar, a colecionar mulheres e a perder muito dinheiro no jogo. O sucesso de um negro na sociedade francesa da virada para o século XX não era bem aceito. Era aceito somente se fosse a escada do branco, se fosse selvagem, sem cultura. O drama se estabelece mais forte, pois Chocolate quer virar Rafael Padilla, mostrar o seu talento além do circo. Após ser preso por falta de documentos legais de permanência e conhecer na prisão um haitiano de pensamento libertário, Victor (Alex Descas), Padilla quer montar Otello e apoiado pela nova namorada, a enfermeira Marie (Clotilde Hesme), ele rompe a barreira do Branco e do Augusto e numa última cena da parceria faz Footit de palhaço.



Mas montar Shakespeare não é uma tarefa fácil e a ruína de uma pessoa que veio de baixo, que diz: "Não tenho medo perder tudo, pois vim do nada" é algo iminente. Sucesso rápido, queda rápida. Rafael Padilla se investe com todas as suas forças e apesar das suas limitações para decorar textos e ter ações dramáticas encarna o primeiro Otello realmente negro dos palcos franceses. O empoderamento do negro no início do século XX, a despeito de todos os preconceitos é o belo do filme. As lutas continuam neste século XXI e foram vistas recentemente na Festa Literária de Paraty (Flip), que não tinha nenhum negro na programação oficial, e seguem adiante, com uma campanha encampada pelo poeta Ronald Augusto tenta fazer com que a Feira do Livro de Porto Alegre, entre fim de outubro e início de novembro, dê mais espaço aos autores negros.  O fim de Rafael Padilla é conhecido por ser uma história real. Morre pobre e tuberculoso em 1917. Uma história bela, alegre e triste ao mesmo tempo. Um filme comovente. Para ser visto com olhos cúmplices.  


FICHA TÉCNICA
Chocolate (França/2016)
Direção: Roschdy Zem.
Com: Omar Sy, James Thiérrée, Thibault de Montalembert, Clotilde Hesme, Olivier Gourmet,  Frédéric Pierrot e Noémie Lvovsky.
Sinopse: Do circo ao teatro, do anonimato à glória, a incrível trajetória do palhaço Chocolat, primeiro artista circense negro da França. O duo inédito formado com Footit, alcança um imenso sucesso popular na Paris da Belle Époque antes que a fama, o dinheiro fácil, o jogo e as discriminações desgastem a amizade da dupla e a carreira de Chocolat.
Distribuição no Brasil: California Filmes.
Gênero: Biografia/Drama.
Duração: 1h50min.


Crédito das fotos: Gaumont / Divulgação

quinta-feira, julho 21, 2016

Até que a distância as separe



Um drama sempre ganha força quando o conflito estabelecido é sólido, alguém morre, uma pessoa perde tudo, ou faz a jornada do herói de Joseph Campbell (depois estruturada para o cinema por Christopher Vogler), uma separação, um desaparecimento. São tantos os gatilhos do drama que um escritor ou um cineasta partem normalmente de suas próprias premissas vividas ou de proximidade para criar suas obras ficcionais. A Nobel de Literatura de 2013, Alice Munro situou três contos de seu livro "Fugitiva", da Biblioteca Azul/Globo Livros (Ocasião, Daqui a Pouco e Silêncio) na toada da tragédia da separação, do desaparecimento e da incomunicabilidade. A sua Juliet  é uma mestre em letras clássica, professora de literatura clássica, que quando vai substituir uma professora durante seis meses em uma escola na cidade canadense de Torrance acaba conhecendo no trem a sua grande paixão. Diferente da Julieta clássica, mas também jovem, o seu amor não está numa festa, numa disputa familiar, nas juras de amor na sacada, no veneno bebido. A história é de reencontro com Eric, seis meses depois já grávida. Ela vai viver com ele em Whale Bay e nasce Penelope.


Uma adaptação para o cinema sempre contém os cortes necessários para que possa ser contada em menos de duas horas. O cineasta espanhol Pedro Almodóvar - conhecido por seu estilo exagerado de dramaticidade, de estética, cores quentes, de non sense, de músicas arrebatadoras, mas sempre com histórias do fundo da alma (com exceção do recente Amantes Passageiros e um ou outro filme do início da carreira) - conseguiu trazer às telas uma história contundente, com um drama que envolve, da mãe que se vê separada da filha por uma culpa e uma carga dramática não conversadas durante a adolescência da menina, no filme chamada de Antía (Penelope é o nome original do livro). 


A construção fílmica de Almodóvar é intensa, desde o tecido vermelho que encarna o início do filme nos créditos iniciais até alguns quadros muito interessantes do deslocamento do trem onde Julieta Arcos (Adriana Ugarte) conhece o pescador Xoan (Eric no livro), do olhar de Julieta para o mar (o Póntos do grego que ela ensina em aula, o mesmo do Ulisses de Homero) e também da transição da Julieta mais jovem para a mais velha, vivida por Emma Suárez, feita apenas com o secar de cabelos numa toalha vermelha (é o cartaz principal da película). No filme, a ação começa com Julieta tendo o gatilho do passado disparado ao encontrar uma grande amiga de Antía, Beatriz  (Michelle Jenner). Mãe e filha já não se veem há 12 anos.  Julieta iria viajar com Lorenzo, escritor, para Portugal e esquecer Madri e a saudade da filha que desapareceu por conta própria. Ela cai em desgraça, como um vício, estava há anos sem pensar na filha e de repente o mundo caiu. A história começa quando Julieta começa a escrever um diário sobre o que aconteceu (isto não está no livro, mas foi uma boa solução narrativa do cineasta espanhol).



Narrando a história, Julieta traz à tona como conheceu Xoan Feijóo (Daniel Grao) no trem que a levava para a escola na qual iria substituir uma professora em licença. Lá a culpa já começa a acompanhar a nossa heroína, pois um homem com o qual ela se recusa a conversar acaba se suicidando nos trilhos do trem (se Woody Allen tem bebido em Dostoievsky porque Almodóvar não pode dar goles de Tolstói). Xoan cuidava da esposa que estava em coma há oito anos e eles acabam tendo uma noite de amor com o trem rodando. 


Seis meses depois, Julieta recebe uma carta de Xoan e vai ao encontro dele bem no dia em que Ana morre. É recebida por Marian (a sempre histriônica e excelente Rossy de Palma, uma das tantas atrizes-âncora de Almodóvar). Assim, acabam formando uma família, mas uma tragédia relacionada a morte de Xoan reacende a culpa em Julieta e também em Antía. As histórias mal-contadas, os segredos, os silêncios, acabam atingindo em cheio a relação das duas e Antía (Blanca Parés) desaparece, quando vai para um centro de espiritualidade e deixa bem claro para a mãe que não quer mais vê-la. Outras tramas paralelas também dão consistência à narrativa, como a presença de Ava (Inma Cuesta), amante de Xoan e responsável por uma das iconografias da trama, uma escultura que emula o homem amado pelas duas, e também dos pais de Julieta, Samuel e Sara, que no livro tem um contraste maior da mãe que retorna para sua cidade pequena com uma filha nos anos 1960 vivendo com um homem, isto é, sem ter casado.  



A angústia de uma mãe privada de ver sua filha, que tenta refazer caminhos para saber o que aconteceu, o que as fez distanciar, os cenários belíssimos construídos por Almodóvar, a trilha exuberantemente envolvente criada por Alberto Iglesias, além da música-tema do filme de Chavela Vargas, "Si No Te Vas", daquelas de se atirar no chão de tão dramática, compõem o cenário de um dos filmes mais maduros e com narrativa bem estruturada de Almodóvar nos últimos dez anos, desde Volver, de 2006, que também trata da relação de mãe e filha (pois Amantes Passageiros, A Pele que Habito e Abraços Partidos foram inferiores em qualidade narrativa e cinematográfica). Um filme para ver e rever, pois um grande cineasta sempre nos causa a maior das expectativas. Talvez alguns se frustrem, pois esperam demais. Coloco Almodóvar no rol de Woody Allen como aquele cineasta de quem sempre se espera muito e que muita vezes comete o autoplágio, mas que sempre nos oferece cinematografia autoral de qualidade acima da média, nunca se dobrando aos pastiches hollywoodianos ou assemelhados. 


Crédito das fotos: El Deseo / Universal Pictures

quinta-feira, março 20, 2014

A voz e as canções de protesto em três línguas de Joan Baez

Crédito da foto: Fabiano do Amaral / Correio do Povo
Em um mês onde muitos brasileiros querem lembrar para esquecer ou revisar os anos 1960, por causa do golpe de 1964, uma das principais vozes do ativismo político pela música daqueles anos mágicos nos Estados Unidos e Europa e de chumbo no Brasil, fez um show emocionante, irrepreensível e recheado de canções de protesto em inglês, espanhol e português durante 1h23min, na noite desta quarta-feira, dia 19 de março, no Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre.

Após um curto show de abertura da gaúcha Vanessa Longoni, que apresentou músicas dos seus dois CDs, Ouro de Oslo e Canção para Voar, a musa da contracultura com 55 anos de carreira, Joan Baez, de 73 anos, subiu ao palco às 21h15min, com o seu violão, a sua voz, o seu carisma, acompanhada dos músicos Dirk Powell (acordeon, violões, banjo e piano) e Gabriel Harris (percussão). Um pouco atrapalhada e contando com o apoio da assistente, técnica afinação de violão e também vocalista Grace Stumberg, Joan leu em português o tema da primeira música God is God, de autoria de Steve Earle, música que abre o mais recente disco da cantora, compositora e instrumentista, “Day After Tomorrow”, de 2008. “Eu acredito em profecias e milagres. Há um só Deus. Deus é Deus”, disse.

Logo após disparou a primeira do ex-namorado da década de 60, Bob Dylan, “Farewell Angelina”, seguindo também com a clássica balada folk “Lily of the West”, seguida da hispano “La Llorona” e da música de Woody Guthrie, “Deportees”, que fala de emigrantes mexicanos que morrem no avião quando são deportados dos Estados Unidos de volta ao México. Na sexta  música, novamente o espectro de Dylan acompanhou Joan com a execução de It´s All Over Now Baby Blue, (que ganhou no Brasil uma linda versão chamada Negro Amor, de Péricles Cavalcanti e Caetano Veloso, gravada por nomes como Gal Costa, Zé Ramalho e Engenheiros do Hawaii).

Depois de apresentar os dois músicos que a acompanham, Joan Baez começou a conquistar ainda mais o público cantando “O Cangaceiro”, do filme homônimo de 1953. “Olé, mulher rendeira, olé mulher renda, tu me ensina a fazer renda e eu te ensino a namorar”, emendando com a marchinha “Acorda Maria Bonita”, seguindo “levanta vem fazer o café, que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé”. Com o público em alta rotação, Joan passou a um clima mais intimista com a música de autoria de Dirk Powell, que assumiu o piano Person para um arranjo simplesmente emocionante de “Just The Way You Are”, seguida pela faixa-título do último disco, “Day After Tomorrow”.

Puxando  a filas das músicas de protesto, Joan cantou “Swing Lot, Sweet Chariot”, que ela cantou na Marcha por Trabalho e Liberdade em Washington, em 1963, no célebre discurso do sonho de liberdade e igualdade de raças de Martin Luther King. Claro que com um papel na mão, lendo a música em português, Joan emendou com “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, de Geraldo Vandré: “Caminhando e cantando e seguindo a canção...”, diante do coro fervoroso de quase 3 mil vozes. Até o fim da primeira parte do show, antes do bis, Joan cantou “House of the Rising Sun”, “Joe Hill”, a folk Give me Cornbread When I´m Hungry, brincando com os hábitos dos gaúchos e brasileiros no seu português enrolado, de comer churrasco e tomar cachaça quando se está com fome e sede e também a marchinha Té Manhã, de Ademilde Fonseca, música que ela disse que canta há 55 anos e que está sempre tentando melhorar. A primeira parte do show terminou com Gracias a La Vida, da chilena Violeta Parra, eternizada por Mercedes Sosa. O bis foi emocionante com Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, de 1973, e Imagine, de John Lennon, duas músicas de resistência e protesto contra a ditadura, as guerras e outras injustiças do mundo. “Pai, afasta de mim este cálice” e “And the world will live as one” (e o mundo viverá como um só).  Uma noite para ficar na memória pela viagem no tempo nas canções e na história do mundo nos últimos 55 anos. Viva Joan Baez.  






domingo, fevereiro 09, 2014

UMA BUSCA FAMILIAR QUE EMOCIONA


Judi Dench e Steve Coogan em história inspirada em fato real<br /><b>Crédito: </b> Paris Filmes / Divulgação / CP
Judi Dench e Steve Coogan em história inspirada em fato real
Crédito: Paris Filmes / Divulgação 
De tempos em tempos, o britânico Stephen Frears nos brinda com um filme calcado em uma história de enlevo. “Philomena” é baseado na realidade de Philomena Lee, que, 50 anos depois, busca seu filho adotado por um casal norte-americano, auxiliada pelo jornalista Martin Sixsmith. No filme que segue em pré-estreia nos cinemas, o ator Steve Coogan interpreta Martin e escreveu o roteiro com Jeff Pope a partir de “A Criança Perdida de Philomena Lee”, de Martin Sixmith. 

Apesar de ser um filme agradável, com toques cômicos, Frears cutuca o período obscuro da Igreja Católica na Irlanda. Em 1952, Philomena Lee (Sophie Kennedy Clark) é uma jovem que tem filho em um convento. Lá, ela assina um papel liberando Anthony para adoção. Ele é adotado por casal americano e some. Cinquenta anos depois, Philomena (Judi Dench) começa a busca pelo filho, com a ajuda de Martin Sixsmith, jornalista desempregado e que resolve fazer matérias de interesse humano.

O grande tempero do filme - que recebeu quatro indicações ao Oscar, incluindo Filme e Atriz - está nesta relação que se estabelece entre Philomena, que tem um temperamento dócil e que não está acostumada com o luxo e a comida de graça nos hotéis, e Martin, um jornalista experiente, com um desdém pela religião, e com temperamento forte e muito cinismo. Pode-se dizer que Philomena passa a adoçar Martin, e ele, por sua vez, reconhece a fé e a crença da mãe em rever novamente o filho. 

Nesta jornada, os dois descobrem alguns furos na história que as freiras contaram. A busca de Philomena mostra nova atuação extremamente orgânica de Judi Dench que, aliada ao envolvimento total e intenso de Steve Coogan no projeto, faz deste um filme emocionante e sensível.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

SOLIDÃO A DOIS


No aniversário de São Paulo, dia 25 de janeiro, boa parte das matérias tratava da cidade como a capital da solidão, do infindável número de pessoas que vivem sozinhas. O mundo caminha cada vez mais para o isolamento. E Spike Jonze (“Adaptação” e “Onde Vivem os Monstros”) viu neste mote, aliado ao veloz avanço das novas tecnologias, uma boa história para contar, criando o roteiro e dirigindo a história de "Ela", sobre de alguém, que teve um trauma amoroso, e que se relaciona melancolicamente com as emoções reais e liricamente com as emoções fabricadas, como no emprego que tem de redator no cartas escritas à mão.com. Theodore Twombly (o sempre magistral para estes papeis sorumbáticos e melancólicos, Joaquim Phoenix) se apaixona pelo sistema operacional do seu computador, um novo equipamento com inteligência artificial e que parece ter emoções, suspira, tem livre arbítrio e é curioso por tudo, evolui a cada conversa (grande interpretação somente com a voz, como dublagens de desenhos animados, de Scarlett Johansson). O filme tem pré-estreias neste fim de semana e estreia nos cinemas no dia 14 de fevereiro.

Curiosamente, na hora de escolher a voz do seu sistema operacional, Theodore, quer uma voz feminina, pois as relações não reais atuais eram chats de sexo. Samantha é tudo o que um homem pode querer numa mulher, é inteligente, resolve os problemas de organização, lê um livro em centésimos de segundo e tem emoções que parecem reais, inclusive gemidos de orgasmo (que na voz de Scarlett Johansson se amplifica por mil).

As relações naturais passam distante dele, mas ele coloca o seu amor na escrita de cartas de bodas de 50 anos. O curioso é que a tecnologia permite ditar as cartas à mão. O reconhecimento de voz trazendo o passado, das cartas escritas à mão, escrever à mão, é escrever com o coração. Com uma trilha de Arcade Fire (When You Know You´re Gonna Die) e até a música criada por Samantha ao piano, The Moon Song (na verdade escrita por Spike Jonze e Karen O. e interpretada por Scarlett) e a recriação de uma cidade futurista, a Los Angeles dos sonhos, que é cinza, com prédios altos, um misto de Nova York e Shanghai, que inclui uma multitude de efeitos visuais, contrastando com as roupas em cores quentes de Theodore (vermelha e amarela), um homem sombrio que já foi alegre, por isso o pedido de calor ou o calor humano colocado nas cartas, como na das bodas de 50 anos de Chris e Loretta, quando ele escreve por ela para Chris: “Lembro do dia que me apaixonei por você.  Deitada nua ao seu lado naquele pequeno apartamento. Então percebi que eu era parte de algo maior. Como os nossos pais, Como os nossos avós. Antes eu vivia a minha vida como se soubesse de tudo. De repente, eu vi uma luz que me despertou. Esta luz era você”.:  .

Spike Jonze vai ao âmago da questão da solidão, do amor e do livre arbítrio, das escolhas humanas e de máquinas que se assemelham a humanos (alguma referência com HAL 9000 de 2001 – Uma Odisseia no Espaço pode ser vista no filme). Ele tenta quebrar a melancolia de Theodore (a escolha do nome não é por acaso, significa presente ou dádiva de Deus). Deus deu ao homem o livre arbítrio, a escolha de poder amar e de poder romper com este amor (que volta em flash backs) e também pode dar a uma máquina, a um sistema operacional o direito de escolher quem amar e a quem servir. As discussões são múltiplas e o texto tem sacadas absolutamente originais, como o fato de Samantha se questionar se os seus sentimentos são reais ou são apenas programação.





Enquanto escreve cartas à mão com um amor irrestrito, o protagonista amarga a dor da separação de Catherine (Rooney Mara) e se apega a uma amizade desde sempre, Amy (a sempre versátil Amy Adams, um recurso sempre interessante em filmes usar o nome do ator para o seu papel, como Adèle em Azul é a Cor Mais Quente). Ele tenta amar novamente, mas o encontro às escuras com uma mulher (a bela Olivia Wilde) cheia de manias e desespero por uma segunda ligação o fazer refletir sobre o vazio que pode estar no mundo sem Catherine e também sem Samantha. Um grande filme, um texto original, uma reflexão sobre a solidão a dois, sobre as escolhas, sobre o amor e os avanços da tecnologia e o isolamento que este mundo atual nos propõe. O filme é o Theodore para todos, um Presente de Deus, seja lá ele quem for ou como se manifeste. 

Que ele ganhe algum Oscar das cinco indicações, que seja o de Roteiro Original (prêmio Writers Guild Award na categoria), ou ainda para Filme (chance menor), Design de Produção (K.K. Barrett e Gene Sardena), Trilha Sonora Original (William Butler e Owen Pallett) e Melhor Canção Original ("The Moon Song"), grandes chances nestas duas últimas. Na torcida, para que este belo filme seja reconhecido pela Academia no dia 2 de março e que possamos ver Spike Jonze filmando a cada dois anos, no mínimo. 

quarta-feira, janeiro 01, 2014

O azul é quente e o paraíso é perdido

 


A minha relação dos dez melhores filmes estrangeiros de 2013 tem o naturalismo fílmico e uma abordagem sem julgamentos da condição de quem ama iguais, tem uma homenagem ao cinema de Murnau, tem a metaficção, a narrativa sem protagonistas, a vida de dois artistas franceses, uma família amarga e sincera, o amor diante de uma doença terminal, tem uma Poliana nem tão moça assim e a continuação de uma saga que segue o tempo normal dos seus personagens, Jesse e Celina, além dos trambiques de um Portugal pós-Troika ou, como queiram, dos arrochos do Mercado Comum Europeu, Dez filmes de tirar o fôlego, que renovaram a dramaturgia cinematográfica, que modificaram a forma ou a mantiveram e foram fundo no conteúdo. Obras para ficar na memória.

Aí vai a lista dos 10 mais (onze, pois há um empate na nona colocação) do cinema internacional em 2013:


1 - AZUL É A COR MAIS QUENTE

O filme de Abdellatif Kechiche tem tudo o que um grande filme precisa e muito mais. É realista ou naturalista, como queiram, conta uma grande história baseada em uma história em quadrinhos, apresenta o mundo lésbico de forma mais profunda, sem julgar. Na verdade, o amor lésbico é o amor. A vida de Adèle é uma vida comum, daquelas de um adolescente que lê A Vida de Marianne, de Marivaux. A história é plausível, filmada de forma a câmera interferir o menos possível (lembram de Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet). E o diretor resolveu interferir o menos possível pois a Clementine, da HQ de Julie Maroh, virou Adèle pois a protagonista é Adèle para seguir a espontaneidade em relação ao nome da atriz Adèle Exarchopoulos, sendo que o título original do filme passou a ser La Vie D´Adèle, A Vida de Adèle e não Azul é a Cor Mais Quente, o título da HQ. A relação de Adèle com Emma (Léa Seydoux) é espontânea. Adèle fala enquanto mastiga e se instiga com o cabelo azul da artista plástica, que é maior de idade. Emma tem o cabelo azul, a relação resolvida com a sexualidade, bem como a maturidade dos pais com a homossexualidade dela. Na vida de Adèle, nada é tão simples. Os pais dela pensam que ser artista é um passatempo e não um trabalho. Adèle é curiosa e vive uma intensa história de amor com Emma, destas que vêm e vão, que são suscetíveis à traição, o romantismo do século 19 atravessando a rua do século 21  As três horas de filme e a cena de sexo de sete minutos só corroboram para todo o naturalismo. O filme não é longo, as pessoas é que às vezes são curtas para o tempo. Bom, o filme é sobre o amor, a transcendência, os costumes, a arte e como é encarada nos dias de hoje uma relação homossexual. Não há julgamento, há só uma bela história, muito cinema e bastante reflexão sobre o tema a posteriori. Merecidamente o melhor filme de 2013, prenunciado pela vitória em Cannes e depois pelos nossos olhos amorosos e condescendentes.
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2 - TABU

Tabu é primeiramente uma homenagem ao cinema e a um dos diretores mais expressivos dos primeiros 40 anos da Sétima Arte, o alemão Friedrich Wilhelm Murnau. O diretor Miguel Gomes cria o seu Tabu, referenciando ao título do filme de Murnau, de 1931 e também ao nome da protagonista Aurora (Laura Soveral/Ana Moreira), outro filme do cineasta alemão, o diretor português inicia a trama com um homem que se suicida ao se jogar aos crocodilos, não sem antes ver refletida a imagem de uma mulher na água, permanecendo no ar a ideia romântica e épica. Invertendo a lógica do Tabu, de 1931, a primeira parte é o “Paraíso Perdido”, a Lisboa atual com vidas quase sem sentido de Pilar (Teresa Madruga), a vizinha Aurora (Laura Soveral) e a sua empregada africana Santa (Isabel Cardoso), rodado todo em preto e banco. Para chegar à segunda parte, “Paraíso”, a transição é a morte de Aurora , O personagem Ventura (Henrique Espírito Santo/Carloto Cotta), que teve um caso com Aurora nos anos 1960 em Moçambique remonta a história da bela Aurora, uma mulher de fibra, uma caçadora, que não tinha medo de crocodilos e que trai o marido (o brasileiro Ivo Müller. O detalhe de toda a narrativa é que a história é contada por Ventura na atualidade e só ele delineia a trama, deixando os personagens da época agirem sem fala, com o mexer de bocas, e apenas com os sons ambientes. Isto cria um efeito maravilhoso, que mixa o cinema mudo com as histórias de Jacques Tati. Um belo filme, pessimista, lírico, épico e uma aula de cinema desconstruído desde o contemporâneo até o mais ancestral, o cinema mudo de Murnau e outros cineastas anteriores.




3 – AMOR

Uma das mais contundentes histórias de amor e dor já filmadas. O austríaco Michael Haneke, com a sua capacidade de mergulhar no mais profundo do ser humano, obteve dos seus protagonistas Emmanuele Riva e Jean-Louis Trintignant o máximo de dramaticidade. A história por si só nos conduz para os labirintos do amor e da finitude, quando Rose tem dois derrames consecutivos e fica em estado vegetativo.

Aqui a crítica que fiz logo após assistir ao filme:

Há quase uma década criei um conto chamado Até o Fim, no qual a narrativa era conduzida por um coveiro que vive a sua vida intensamente até o fim mesmo. Ele mesmo orquestra o seu enterro. Bom, estou abordando o tema subjetivamente, pois o filme Amor, de Michael Haneke é um exercício diante da finitude, diante do amor até o fim. É um exercício minimalista, mas com uma grande carga de dramaticidade e interpretações exuberantes dos protagonistas que encaram o casal francês de professores de música aposentados, com idade acima dos 80 anos, Anne e George (Emmanuele Riva e Jean-Louis Trintignant).

Sem querer contar o que se sucede no filme do diretor de Caché e A Fita Branca, mas encaminhando a condução da narrativa, é importante se dizer que o grande sucesso que o filme vem fazendo se deve principalmente ao fato de o filme nos fazer confrontar com um drama que mais cedo ou mais tarde, direta ou indiretamente, irá atingir todos nós. Após assistir a um concerto de um ex-aluno, o pianista na vida real Alexandre Tharaud, Anne vai para casa e no dia posterior tem um derrame. Com o lado direito paralisado, Anne passa a necessitar de auxílio para a maior parte das atividades cotidianas. Não querendo falar da síndrome de cinema e lágrimas, mas as privações de Anne e o empenho amoroso de George acabam nos deixando com o coração partido, desnorteados, tentando entender o que é o amor diante de um acidente vascular cerebral ou das doenças degenerativas e da própria morte. Ele resiste. Ele pode ser maior do que tudo. Mas somos humanos. 


Neste lado humano do amor, o papel da filha, representado por Isabelle Huppert, e do casal de zeladores do prédio, que ajudam com as compras, e também das enfermeiras fazem o contraponto, de pessoas que não entendem porque Anne não quer ir para um hospital ou um asilo. É uma mulher culta, professora de música, lê e ouve música todos os dias. A degradação e a entrega não fazem parte do seu vocabulário. Haneke sabe disto e nos coloca dentro da perspectiva do apego do casal e de como eles se relacionam com a doença de Anne e com o mundo externo. O que George vai fazer com Anne é uma decisão que só ele pode tomar e que só um filme com tamanho poder de discernimento e grau de realidade pode nos proporcionar. 
Os prêmios recebidos por Amor são mais que merecidos, incluindo a Palma de Ouro em Cannes 2012 e mais recentemente o César de Melhor Filme, o Oscar francês. Haneke que já havia mergulhados nas profundezas da alma humana em A Professora de Piano, Violência Gratuita, Cachê e A Fita Branca é um diretor no qual se pode confiar, que sempre vai nos apresentar histórias com um grau de drama e de humanidade acima da média. Filme triste, de lágrimas, mas para que pensemos no que fazer diante da finitude da vida neste plano terreno. 


4 - AS QUATRO VOLTAS
Publico a crítica do filme escrita em maio:

Antes de começar a entabular esta crítica, preciso dar um aviso, prestar um serviço de utilidade ao público. Se você é daqueles espectadores que está acostumado com as linguagens convencionais de narrativa cinematográfica, aquele esquemão básico de roteiro do Syd Field, com apresentação, confrontação e resolução, dois pontos de virada, anticlímax e clímax, com ação sustentada pelos diálogos e uma trama bastante visível para que você possa entender ou desvendar o filme, então nem se dirija ao cinema para ver o filme com coprodução da Itália, Alemanha e Suíça: "As Quatro Voltas", vencedor do prêmio Melhor Filme Europeu da Quinzena dos Realizadores de Festival de Cannes em 2010.
Filme que remete a algumas obras de Jacques Tati pela ausência de diálogos e a utilização do som direto e também o cinema contemplativo de Andrey Tarkovskiy, em filmes como "O Sacrifício", este segundo longa do italiano de Milão, Michelangelo Frammartino (o primeiro é "Il Dono", cuja tradução seria O Dono, agora ele já rodou o documentário Alberi), trata dos ciclos de vida, do tempo e da natureza e como o homem se insere nestes ciclos. O local é uma pequena aldeia com características medievais nas montanhas da Caulonia, na Calábria, no sul da Itália. Os ciclos são apresentados exatamente em quatro voltas que envolvem um homem (pastor de cabras), uma cabra, uma árvore e a fabricação do carvão, pois o sustento da região é carboneiro e também o carvão serve para aquecer as casas no frio calabrês. É uma espécie de eterno retorno de Nietzche com as formas de vida e subsistência da região. As quatro voltas são a humana, a animal, a vegetal e finalmente a mineral.

A poesia visual e a beleza narrativa de "As Quatro Voltas" é o que mais incomoda ao espectador que não se informou sobre o filme antes de entrar na sala. O primeiro quarto de narrativa da 1h28min do filme acompanha um homem (Giuseppe Fudda) que pastoreia as suas cabras e está muito doente. O tempo passa e os dias são exatamente iguais, os sons da pequena vila são dos cachorros, do vento nas árvores, uma voz ao longe, do balido das cabras e dos sinos de localização que elas carregam. O pastor acredita que o melhor remédio para a sua doença está na poeira acumulada no chão da igreja, que ele coleta junto a uma funcionária da igreja e mistura com água antes de dormir para beber. A poeira provavelmente vem das cinzas do carvão, o eterno retorno na mesma aldeia.

No dia em que ele perde o pó coletado, bate o desespero e ele recorre à igreja à noite, mas ninguém atende. Ele dorme preocupado e não levanta de manhã, quando um acidente faz com que as cabras se soltem e invadam a casa onde mora (uma cena na melhor linha de "O Anjo Exterminador", de Luis Buñuel, que era com ovelha numa sala). O ciclo do pastor está findando e o de uma cabritinha está começando desde o seu parto, o carinho da mãe até as brincadeiras e o acaso agindo para que ela se perca. No meio disto tudo, a comunidade segue suas tradições da encenação da Paixão de Cristo e os carboneiros que aparecem no início do filme são os centuriões (Bruno Timpano e Nazareno Timpano). Não há diálogos, só vozes distantes e a câmera contemplando as ações, inclusive o balido desesperado da cabritinha quando ela se perde e alcança abrigo numa árvore frondosa, um pinheiro. A volta dela também se finda e o que se vê é uma tela escura e as batidas com pás da feitura do carvão, um sinal de morte, mas de renascimento para o bem coletivo da aldeia.

 A árvore frondosa enfrenta as quatros estações, o inverno e a neve, mas não se mantém diante de uma tradição calabresa de colocar no centro da aldeia um tronco altíssimo, a "Pita" (a árvore finalizando o seu ciclo) com ramos e balões no seu topo. Após a festividade que também pode ser associada à religiosidade (característica intrínseca a qualquer comuna italiana), á arvore vira lenha e vai alimentar a fabricação do carvão, que vai virar fumaça e irá para o ar da comunidade, num ciclo sem fim.

A poesia do filme reside em entender estes ciclos e se utilizar apenas da câmera contemplativa, sem a interferência do roteiro para apresentar os possíveis ciclos da vida numa comunidade onde os tempos modernos não chegaram, a vida segue sempre a mesma sina. De alguma forma é um eterno retorno à italiana (a visão deste outro pintor visual, casualmente também Michelangelo sobre a teoria de Nietzsche) ou então a doutrina dos ciclos (descrita por Jorge Luis Borges), como queiram, pois para quem acredita, quando um ciclo se finda ou uma volta é dada, outra se inicia, em espiral ou em círculos. Uma obra de exceção, que não é para todos. Público de blockbuster, mantenha-se distante ou saia nos primeiros 15 minutos, como várias pessoas o fizeram na sessão em que eu fui.



5 – ÁLBUM DE FAMÍLIA

O filme de John Wells, baseado na peça de Tracy Letts, sobre a amarga família que vive no Condado de Osage, em Oklahoma, foi mais uma das grandes surpresas cinematográficas de fim de ano. Muitas pessoas reclamam do cinema que é teatral, mas a dramaturgia e o conflito são o quesito mais essencial do cinema. Não adianta muita forma sem conteúdo. A história da família de Beverly e Violet Weston, encarnada pelos monstros Sam Shepard (participação curta e essencial) e Meryl Streep, da qual não temos mais nada a dizer, tamanha a sua entrega para os papeis. A relação de Violet com as filhas e com a família é conturbada e o suicídio de Beverly traz todas as verdades à tona e os podres falados em voz alta à mesa, num embate forte entre Violet e a filha Bárbara, a que mais a enfrenta e que também é amarga, como todos na família, vivida pela também grande atriz e agora mais madura cenicamente falando, Julia Roberts. Um grande filme sobre os podres familiares e como fazer para conviver com eles.




6 - VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA

Cineasta totalmente autoral, o francês Alain Resnais nos proporcionou pelos menos duas pérolas da ficção poética como "Hiroshima, Mon Amour" e "O Ano Passado em Marienbad", além do difícil filme duplo ou espelho como  "Smoking/No Smoking" e do excelente musical "Amores Parisienses". Aos 90 anos e casado com a atriz Sabine Azéma, Resnais está longe da senilidade e segue o caminho inventivo que acompanha os cineastas autorais franceses. Em "Vocês Ainda Não Viram Nada" que estreia nos cinemas neste final de semana, o ponto de partida é o último desejo de um diretor na hora da sua morte. Baseado no livro "Eurídice", de Jean Anouilh, este drama dramatúrgico - é assim redudantemente que o batizo - tem como início o assistente (o ator polonês Andrzej Seweryn) do diretor e dramaturgo Antoine d´Anthac (Denys Podalydès, da Comédie Française), ligando para cada um dos atores que já interpretaram a peça Eurídice, do próprio d´Anthac. Ele liga, diz alô e pergunta se a pessoa é Sabine Azéma, comunica que lamentavelmente o senhor Antoine d´Anthac faleceu e que ela é esperada na suntuosa casa dele no alto de uma montanha em Peillon. Assim também recebem as ligações em telefones celulares ou convencionais, os atores Pierre Arditi, Mathieu Amalric, Michel Piccoli, Lambert Wilson, Anne Consigny, Hippolyte Girardot, Jean-Noel Brouté, Anny Duperey, Jean-Chrétien Sibertin-Blanc e Michel Vuillermoz.
Assim como os mesmos planos cinematográficos repetidos a cada ligação do assistente do dramaturgo e o consequente atender ao telefone de perfil, a chegada à mansão em Peillon é feita ao melhor estilo Resnais, com a câmera no mesmo ponto, centralizando o abrir da porta, com o vento forte lá fora e a porta se abrindo, com o assistente apresentando a casa a cada um dos atores, que ali vivem eles mesmo como atores que interpretaram a Eurídice do dramaturgo falecido. Cada um dos atores destaca o gosto e o colecionismo de Antoine pelas casas exóticas. Após a chegada de todos e os respectivos cumprimentos de pessoas que não se viam há tempos, o assistente dispõe todos os atores defronte a um telão, que é recoberto por um quadro que reproduz a visão externa da casa onde eles estão. No telão, Antoine d´Anthac enfatiza que recebeu de um grupo iniciante a Compagnie de La Colombe (Companhia da Pomba, traduzindo do francês) uma versão em vídeo da montagem de Eurídice e que se eles estão assistindo à montagem neste momento é porque ele já está morto e pede que eles aprovem ou não a montagem.



O que acontece a partir daí é a mágica da metalinguagem e da interação tela/palco/vida. O telão reproduz o drama de Eurídice (baseado na lenda grega do Orfeu), que está dividida entre o amor de três homens, um deles é Orfeu, que tem uma relação intensa com a música e que deixa o pai na estação para fugir com Eurídice para um hotel em Marseille. Os atores como Sabine Azéma/Anne Consigny e Pierre Arditi/Lambert Wilson, que viveram Eurídice e Orfeu nas montagens de d´Anthac assistem inicialmente à montagem do grupo iniciante, balbuciando os textos e depois interagindo com o telão, até trazerem a trama para a casa em Peillon. Nos três atos da história, a dramaticidade do texto transita entre a casa e o telão e entramos dentro de uma experiência metalinguística incomparável. Revivendo os papéis interpretados na tela pelos jovens atores, os veteranos mexem com o seu passado, com o seu fazer teatral e também com a própria identidade de atores vivendo eles mesmos interpretando uma peça que também tem uma correlata no telão. Resnais cria o seu universo teatral e a partir daí acompanhamos um teatro onde a vida, o palco e a tela perdem suas fronteiras.

As interpretações de outros gigantes do teatro e do cinema francês como Michel Piccoli, Hippolyte Girardot, Mathieu Amalric e Anny Duperey, pontuadas pela trilha densa e precisa de Marc Snow e pela fotografia que privilegia as mudanças de luz e os interiores dos cenários, dão ao filme uma intensidade que não precisa ser marcada pelo ritmo veloz, mas sim pelo metrônomo de uma montagem teatral. A reviravolta existente no final é impossível de ser contada, pois atrapalharia a surpresa apontada por Resnais, mas posso adiantar que é dramática, como o próprio Resnais, como o personagem de Antoine d´Anthac e como o filme requer, pois estamos diante da nata da atuação na França, cujos prêmios de atuação todos somados chegariam a duas ou três centenas de troféus. Um filme para se deixar levar, para sonhar, para interpretar, para ver e rever, para transpor as fronteiras e os limites entre a vida, o teatro e o cinema. Imperdível como qualquer filme de Alain Resnais.


7 - FRANCES HA

Um belo filme de Noah Baumbach. Uma Poliana moderna vivida por Greta Gervig. Uma mulher que tem sua vida pela metade, cujos amores, a amizade e a carreira estão sempre no quase. A identificação é quase que total com aqueles que estão sempre querendo acertar na carreira, no amor e na vida, mas sempre ficam pelo meio do caminho. Bela obra cinematográfica em preto e branco e com a trilha encabeçada por Modern Love.



8 – ANTES DA MEIA-NOITE

Jesse e Celina estão de volta, desta vez com mais de 40 anos, com duas filhas passando as férias na Grécia e discutindo a relação como qualquer casal. Bela trilogia construída por Richard Linklater, com roteiro dele e dos atores Julie Delpy e Ethan Hawke. Um grande filme e um grande projeto, que segue o tempo real da idade dos atores e do que o tempo faz com um casal.





9 – RENOIR / CAMILLE CLAUDEL 1915

Dois belos filmes sobre o universo de dois artistas franceses. O primeiro mostra a relação de Pierre-Auguste Renoir (Michel Bouquet) com uma das suas modelos de nus (Christa Teret) e o despertar do filho Jean Renoir para o cinema. O filme trata das sutilezas do pensamento e da pintura do grande Renoir numa segura câmera de Gilles Bourdos. O segundo aborda os últimos de anos da escultora Camille Claudel (Juliette Binoche) em um sanatório e a esquizofrenia em relação a Rodin e a vontade de sair de lá, externada em cartas e conversa com o irmão Paul Claudel e a aspereza da loucura, filmada em um chiaroscuro atordoante por Bruno Dumont.  


10 – AMÉRICA

Aqui uma crítica sobre o filme do português João Nuno Pinto, escrita no início do ano:

A NAU DOS ENCALHADOS

O cinema português está mais prolífico que nunca e sobrevive além do seu incansável ícone Manoel de Oliveira, de 104 anos. Quando estive em Portugal entre novembro e dezembro de 2012, eram cerca de 10 lançamentos de filmes genuinamente portugueses, como "Operação Outono" e "Deste Lado da Ressurreição ainda inéditos no Brasil e "Aristides de Sousa Mendes - o Cônsul de Bordéus", este exibido em première na 9ª Seleção de Filmes Bourbon, realizada pela Panda Filmes, em novembro de 2012. Novamente, a Panda Filmes nos coloca em contato com produção portuguesa, co-produzida com Espanha, Brasil e Rússia. "América", dirigido por João Nuno Pinto, é um filme de náufragos, pessoas sempre à deriva, que vivem de pequenos golpes, principalmente no que tange ao acolhimento das centenas de imigrantes que desembarcam na nova América que é Portugal, um caldeirão de culturas e uma das portas entradas mais tranquilas da Europa rica na atualidade, já que França, Espanha, Itália e Alemanha apertaram um pouco o cerco aos imigrandes. O diretor João Nuno Pinto o define como um filme de "encalhados". A obra é baseada no conto "Criação do Mundo", da autora portuguesa Luísa Costa Gomes, co-roteirista do filme junto com João Nuno Pinto e Melanie Dimantas.
Com uma poética visual bastante própria e uma trilha sonora que gira entre o lírico e a tensão, "América" nos coloca na periferia de uma pequena cidade litorânea portuguesa, com a narrativa seguindo a voz em off de Liza (Chulpan Khamatova, de "Adeus, Lênin", melhor atriz da 11ª Semana de Cine Iberoamericano de Villaverde, Espanha, uma jovem imigrante russa, casada com um português, Vítor (Fernando Luís, ator carismático e que empresta uma grande organicidade ao papel), de quem tem um filho, Mauro (Manuel Custódia). Vítor é um trambiqueiro, como chamamos aqui no Brasil. A sua sina é enganar velhinhas e quando muito tirar 200 euros de algo ligado a previdência e a um dinheiro que está para chegar. Mauro, de uma hora para outra, resolve não falar e se comunica com olhares e com brincadeiras. Liza cuida da casa e da avó de Vítor, que se recusa a comer, mas que demonstra um carinho enorme por Liza, chamada de Popova por Vítor.

A primeira virada do filme se dá quando a espanhola Fernanda (María Barranco), ex-mulher de Vítor, reaparece propondo um negócio de falsificação de passaportes para os imigrantes ilegais russos, ucranianos, angolanos, brasileiros, entre outos. A partir daí, Liza perde o controle sobre a casa e o local passa a ser ponto de passagem para inúmeros imigrantes de várias raças e nacionalidades. Todos náufragos ou encalhados à procura de uma terra realmente firme. Com Fernanda, aparecem dois tipos especialmente estranhos, o espanhol Tolentino (Fernando Maestre) e o brasileiro Matias (Cassiano Carneiro, que atuou em filmes e novelas no Brasil como "Mandacaru"). Os dois dão o tom de humor necessário a um filme de erros. Enquanto Tolentino é o próprio tragicômico espanhol, parecendo egresso de um filme de Almodóvar, Matias dá a brasilidade e aquele humor ácido. Uma das principais piadas do filme é quando eles estão organizando a fila para encaminhar os passaportes falsificados e Matias pergunta: "Quem é africano? Então vai para o fim da fila. E quem é brasileiro? Vai para trás dos africanos". Outra piada que funciona é quando alguém pergunta o nome daquele artista famoso de Hollywood e alguém responde: "É o Denzel Washington" e ouve: "Não, é o King Kong".

A trama está cheia de viradas e acompanhamos Liza tentando fugir daquela realidade de encalhados, sem nunca obter sucesso, enquanto a situação fica cada vez mais crítica. Todos dependem do artista do grupo, o velho Melo (o veterano Raul Solnado, que faleceu no período de pós-produção do filme em agosto de 2009 e a quem a obra é dedicada) e também do cérebro dos golpes que é Paulo Armando (Dinarte Branco), que tem ideias para golpes virtuais, mas é um incompreendido. Para piorar, Liza se envolve com um ortopedista ucraniano Andrei (Mikahil Evlanov) e Vítor tem uma recaída com Fernanda. O filme ainda nos reserva cenas belíssimas da cidade litorânea (a locação é na Cova do Vapor, localizada no distrito de Setúbal, próximo de Lisboa, na junção entre o rio Tejo e o Oceano Atlântico), dos labirintos de ruelas onde Liza e Vítor moram, a força da chuva no outono/inverno português e algumas cenas meio Fellinianas, como um barco que encalha no teto da casa que é o centro da trama. A fotografia foi vencedora do festival Indie Lisboa, em Portugal. Além disto, a máfia russa também aparece, pois na vida real ela existe e está disseminada por toda a Europa, após o fim da União Soviética.

Um filme belo, bem-humorado e tenso ao mesmo tempo, que nos leva a pensar numa tragédia iminente, pois os fios que ligam os personagens a uma vida normal são muito frágeis. A mão do diretor está sempre presente, provando que João Nuno Pinto, que havia dirigido somente o curta "Skype Me" (2008) merece toda a nossa atenção daqui por diante, por mostra uma trama com tensão constante, belas imagens, bons atores e com uma narrativa que nunca perde o pique e o foco. Pinto recebeu dois prêmios de Melhor Diretor pelo filme no 15º Festival Sofia de Cinema Independente 2011, na Bulgária e no 5º Festival Cineport, no mês de setembro de 2012, em João Pessoa (PB).
  
Uma bela e simbolista obra sobre as consequências do Mercado Comum Europeu na Europa atual, o revolto mar financeiro deixa muitos náufragos pelo caminho. .