quinta-feira, julho 28, 2016

Um Negro Augusto


Filmes sobre palhaços são normalmente mais tristes do que alegres. Só para citar dois exemplos, o documentário "I Pagliacci", de Federico Fellini, e "O Palhaço", de Selton Mello. Em "Chocolate", filme francês de Roschdy Zem, a situação não é diferente.  Antes de começar a crítica propriamente dita, vou explicar o título que dei a este texto. Augusto é um termo do latim que designa aqueles que são veneráveis, sublimes, elevados. O título era dado aos imperadores romanos. Em alemão, o termo significa alguém em situação ridícula, risível. O negro augusto é Omar Sy e também Rafael Padilla, o personagem que ele interpreta, o palhaço Chocolate, Augusto na denominação dos palhaços, mais extravagante, provocador, mas ao mesmo tempo marginalizado ou submetido pelo Branco, no caso do filme inspirado por uma história da vida real, George Footit (James Thiérrée). A dupla Footit e Chocolate marcou época na França da virada do século XIX para o século XX.


A história do filme "Chocolate" é desta augustez de Rafael Padilla (um Omar Sy que já rala no cinema desde 2001, mas que desde "Intocáveis", em 2011, faz uma média de dois filmes por ano, sempre com atuações marcantes), um jovem negro que nasceu em Cuba em 1868 e foi vendido como escravo ainda criança. Na França, ele é encontrado por um palhaço que o integra ao circo. Padilla foi o primeiro artista circense negro na França, fazendo estrondoso sucesso no final do século XIX. Esta animada cinebiografia feita da maneira mais convencional possível pega o espectador naquilo que sempre mais nos toca, a ascensão e queda de um personagem.  O filme foi adaptado pelo diretor Roschdy Zem, Cyrill Gely e Olivier Gorce, do livro “Chocolat Clown Nègre – L’histoire oubliée du premier artiste noir de la scène française”, escrito por Gérard Noiriel.



Apresentado como um primitivo canibal africano no Circo Delvaux, do casal Delvaux (Frédéric Pierrot e Noémie Lvovsky), Kananga como Padilla é chamado (ninguém sabe o seu real nome) é um fanfarrão, apostador e divertido artista de circo, mas sem grandes chances de brilhar até que o veterano, famoso, mas decadente palhaço George Footit (James Thiérrée) o observa numa apresentação do Delvaux pelo interior da França e vê o potencial para que ele seja o seu ajudante, a sua escada para gags, o seu palhaço Augusto. Ele treina Kananga para fazer números com ele e aí vão os primeiros méritos para o diretor Roschdy Zem pela seleção de Thiérrée que, além de belo ator, tem um trabalho corporal fabuloso, muito inspirado em Chaplin e outros clowns e fez a preparação de palhaço com Omar Sy e a criação das coreografias. Foi um cocriador do filme. Bueno, seguindo a análise e a história, os dois acabam fazendo o número e o circo passa a lotar. Os conflitos começam a aparecer, bem como a ambição de Footit de voltar a Paris por cima da carne seca, como dizemos por aqui. O diretor do Cirque Noveau de Paris, Oller (Olivier Gourmet) faz o convite para que eles apresentem seu número e Kananga deixa para trás os amigos mambembes e também a namoradinha bailarina Camille (Alice de Lencquesaing, com ares de Natalie Portman).


O sucesso é instantâneo e enquanto Footit é um palhaço que nunca ri, como normalmente o são os palhaços, Kananga vira Chocolate, ganha muito dinheiro, passa a esbanjar, a colecionar mulheres e a perder muito dinheiro no jogo. O sucesso de um negro na sociedade francesa da virada para o século XX não era bem aceito. Era aceito somente se fosse a escada do branco, se fosse selvagem, sem cultura. O drama se estabelece mais forte, pois Chocolate quer virar Rafael Padilla, mostrar o seu talento além do circo. Após ser preso por falta de documentos legais de permanência e conhecer na prisão um haitiano de pensamento libertário, Victor (Alex Descas), Padilla quer montar Otello e apoiado pela nova namorada, a enfermeira Marie (Clotilde Hesme), ele rompe a barreira do Branco e do Augusto e numa última cena da parceria faz Footit de palhaço.



Mas montar Shakespeare não é uma tarefa fácil e a ruína de uma pessoa que veio de baixo, que diz: "Não tenho medo perder tudo, pois vim do nada" é algo iminente. Sucesso rápido, queda rápida. Rafael Padilla se investe com todas as suas forças e apesar das suas limitações para decorar textos e ter ações dramáticas encarna o primeiro Otello realmente negro dos palcos franceses. O empoderamento do negro no início do século XX, a despeito de todos os preconceitos é o belo do filme. As lutas continuam neste século XXI e foram vistas recentemente na Festa Literária de Paraty (Flip), que não tinha nenhum negro na programação oficial, e seguem adiante, com uma campanha encampada pelo poeta Ronald Augusto tenta fazer com que a Feira do Livro de Porto Alegre, entre fim de outubro e início de novembro, dê mais espaço aos autores negros.  O fim de Rafael Padilla é conhecido por ser uma história real. Morre pobre e tuberculoso em 1917. Uma história bela, alegre e triste ao mesmo tempo. Um filme comovente. Para ser visto com olhos cúmplices.  


FICHA TÉCNICA
Chocolate (França/2016)
Direção: Roschdy Zem.
Com: Omar Sy, James Thiérrée, Thibault de Montalembert, Clotilde Hesme, Olivier Gourmet,  Frédéric Pierrot e Noémie Lvovsky.
Sinopse: Do circo ao teatro, do anonimato à glória, a incrível trajetória do palhaço Chocolat, primeiro artista circense negro da França. O duo inédito formado com Footit, alcança um imenso sucesso popular na Paris da Belle Époque antes que a fama, o dinheiro fácil, o jogo e as discriminações desgastem a amizade da dupla e a carreira de Chocolat.
Distribuição no Brasil: California Filmes.
Gênero: Biografia/Drama.
Duração: 1h50min.


Crédito das fotos: Gaumont / Divulgação

quinta-feira, julho 21, 2016

Até que a distância as separe



Um drama sempre ganha força quando o conflito estabelecido é sólido, alguém morre, uma pessoa perde tudo, ou faz a jornada do herói de Joseph Campbell (depois estruturada para o cinema por Christopher Vogler), uma separação, um desaparecimento. São tantos os gatilhos do drama que um escritor ou um cineasta partem normalmente de suas próprias premissas vividas ou de proximidade para criar suas obras ficcionais. A Nobel de Literatura de 2013, Alice Munro situou três contos de seu livro "Fugitiva", da Biblioteca Azul/Globo Livros (Ocasião, Daqui a Pouco e Silêncio) na toada da tragédia da separação, do desaparecimento e da incomunicabilidade. A sua Juliet  é uma mestre em letras clássica, professora de literatura clássica, que quando vai substituir uma professora durante seis meses em uma escola na cidade canadense de Torrance acaba conhecendo no trem a sua grande paixão. Diferente da Julieta clássica, mas também jovem, o seu amor não está numa festa, numa disputa familiar, nas juras de amor na sacada, no veneno bebido. A história é de reencontro com Eric, seis meses depois já grávida. Ela vai viver com ele em Whale Bay e nasce Penelope.


Uma adaptação para o cinema sempre contém os cortes necessários para que possa ser contada em menos de duas horas. O cineasta espanhol Pedro Almodóvar - conhecido por seu estilo exagerado de dramaticidade, de estética, cores quentes, de non sense, de músicas arrebatadoras, mas sempre com histórias do fundo da alma (com exceção do recente Amantes Passageiros e um ou outro filme do início da carreira) - conseguiu trazer às telas uma história contundente, com um drama que envolve, da mãe que se vê separada da filha por uma culpa e uma carga dramática não conversadas durante a adolescência da menina, no filme chamada de Antía (Penelope é o nome original do livro). 


A construção fílmica de Almodóvar é intensa, desde o tecido vermelho que encarna o início do filme nos créditos iniciais até alguns quadros muito interessantes do deslocamento do trem onde Julieta Arcos (Adriana Ugarte) conhece o pescador Xoan (Eric no livro), do olhar de Julieta para o mar (o Póntos do grego que ela ensina em aula, o mesmo do Ulisses de Homero) e também da transição da Julieta mais jovem para a mais velha, vivida por Emma Suárez, feita apenas com o secar de cabelos numa toalha vermelha (é o cartaz principal da película). No filme, a ação começa com Julieta tendo o gatilho do passado disparado ao encontrar uma grande amiga de Antía, Beatriz  (Michelle Jenner). Mãe e filha já não se veem há 12 anos.  Julieta iria viajar com Lorenzo, escritor, para Portugal e esquecer Madri e a saudade da filha que desapareceu por conta própria. Ela cai em desgraça, como um vício, estava há anos sem pensar na filha e de repente o mundo caiu. A história começa quando Julieta começa a escrever um diário sobre o que aconteceu (isto não está no livro, mas foi uma boa solução narrativa do cineasta espanhol).



Narrando a história, Julieta traz à tona como conheceu Xoan Feijóo (Daniel Grao) no trem que a levava para a escola na qual iria substituir uma professora em licença. Lá a culpa já começa a acompanhar a nossa heroína, pois um homem com o qual ela se recusa a conversar acaba se suicidando nos trilhos do trem (se Woody Allen tem bebido em Dostoievsky porque Almodóvar não pode dar goles de Tolstói). Xoan cuidava da esposa que estava em coma há oito anos e eles acabam tendo uma noite de amor com o trem rodando. 


Seis meses depois, Julieta recebe uma carta de Xoan e vai ao encontro dele bem no dia em que Ana morre. É recebida por Marian (a sempre histriônica e excelente Rossy de Palma, uma das tantas atrizes-âncora de Almodóvar). Assim, acabam formando uma família, mas uma tragédia relacionada a morte de Xoan reacende a culpa em Julieta e também em Antía. As histórias mal-contadas, os segredos, os silêncios, acabam atingindo em cheio a relação das duas e Antía (Blanca Parés) desaparece, quando vai para um centro de espiritualidade e deixa bem claro para a mãe que não quer mais vê-la. Outras tramas paralelas também dão consistência à narrativa, como a presença de Ava (Inma Cuesta), amante de Xoan e responsável por uma das iconografias da trama, uma escultura que emula o homem amado pelas duas, e também dos pais de Julieta, Samuel e Sara, que no livro tem um contraste maior da mãe que retorna para sua cidade pequena com uma filha nos anos 1960 vivendo com um homem, isto é, sem ter casado.  



A angústia de uma mãe privada de ver sua filha, que tenta refazer caminhos para saber o que aconteceu, o que as fez distanciar, os cenários belíssimos construídos por Almodóvar, a trilha exuberantemente envolvente criada por Alberto Iglesias, além da música-tema do filme de Chavela Vargas, "Si No Te Vas", daquelas de se atirar no chão de tão dramática, compõem o cenário de um dos filmes mais maduros e com narrativa bem estruturada de Almodóvar nos últimos dez anos, desde Volver, de 2006, que também trata da relação de mãe e filha (pois Amantes Passageiros, A Pele que Habito e Abraços Partidos foram inferiores em qualidade narrativa e cinematográfica). Um filme para ver e rever, pois um grande cineasta sempre nos causa a maior das expectativas. Talvez alguns se frustrem, pois esperam demais. Coloco Almodóvar no rol de Woody Allen como aquele cineasta de quem sempre se espera muito e que muita vezes comete o autoplágio, mas que sempre nos oferece cinematografia autoral de qualidade acima da média, nunca se dobrando aos pastiches hollywoodianos ou assemelhados. 


Crédito das fotos: El Deseo / Universal Pictures