Era o dia definitivo para André. Deste dia em diante, sairia da incômoda condição de estagiário para ser efetivado como jornalista naquela redação repleta de repórteres experientes. Daqueles atendimentos de balcão, ouvindo pessoas reclamarem de buracos de ruas e falta de iluminação pública passaria, com certeza, a ser selecionado para melhores pautas. Eventos culturais e esportivos noturnos. Nada daquelas beatíficas apresentações nos pátios de escolas ou jogos de bolinha de gude entre equipes de várzea.
Bom deve se dizer algumas coisas a respeito deste dia. André acordou mais cedo do que de costume e não conseguiu conter a ânsia. Eram sete horas da manhã e pegaria às oito. O café foi tomado queimando a língua, com o sanduíche formando uma massa disforme enrolada indo contrafagicamente ao seu estômago. Pegou o seu material de trabalho por volta das sete e meia e foi para a parada de ônibus, que demorou. No discman, ouvia-se uma música antiga do Plebe Rude: Até quando esperar?. Quando o ônibus chegou, cedeu a sua vez para um homem cego e para uma senhora idosa, até que entrou, pagou a passagem e sentou bem atrás, no corredor e não na janela, sinal de pressa.
Ao chegar à redação, cumprimentou a todos efusivamente, mas já se encarregou de olhar a lista de pautas e ter a primeira reunião da manhã com a chefia de reportagem e alguns outros repórteres de plantão. O dia prometia, pois havia uma greve de metalúrgicos e também um protesto de familiares de uma adolescente morta defronte à escola onde estudava. Foi para as duas pautas com um afinco sem igual. 30% de reposição de perdas salariais de um lado e pedidos de mais segurança e desarmamento de outro. Ele estava no fogo cruzado, defendendo as pautas com unhas e dentes, mas sabendo que uma matéria denunciando a falta de acessibilidade para deficientes físicos deveria ser a manchete. A preocupação social se estendia tanto às classes trabalhadoras e à perda de entes queridos, mas pairava nos portadores de deficiência um problema mais factual, como gostava de dizer um editor à moda antiga, que também era professor universitário, amante de jazz e da poesia de Fernando Pessoa.
Na hora de redigir os dois textos e ainda confeccionar algumas notas sobre eventos previstos para a cidade no dia de amanhã, ele estava calmo, apesar de precisar de uma seqüência de quatro cafezinhos para engrenar. Assim que entregou as matérias, com sugestão de título, linha de apoio, olho e legenda, ele se despediu dos colegas e se sentiu um repórter completo, pelo menos até o momento em que foi atropelado enquanto corria para pegar o ônibus de volta no finalzinho da tarde. Iria a um cinema com a namorada Júlia. Morreu a caminho do hospital. Ironia ou não, um estagiário do jornal que estava de plantão é que pegou as informações sobre o colega, mas o editor deu uma grande valorizada no material publicado em página inteira espelhada com as duas matérias que fez e mais as notas. Deve ter morrido feliz, pois seu sonho era ser repórter daquele jornal, mas vai saber...