sábado, junho 30, 2012

Inocente simulacro de guerra



 Surpresas agradáveis. Este ano de 2012 está se revelando pródigo nestes filmes para os quais vamos sem muitas pretensões e acabamos embarcando nas suas histórias e saímos da sala de cinema leves e agradecidos. A Guerra dos Botões é um destes filmes. Adaptação do romance homônimo escrito pelo francês Louis Pergaud, em 1912, já teve outras três adaptações, a mais famosa delas foi em 1962, dirigida pelo francês Yves Robert e a mais recente uma produção irlandesa de 1994, guiada por John Roberts. Dirigido por Yann Samuel (Amor ou Consequência), esta produção francesa trata do que podemos chamar um simulacro de guerra, isto é, as pequenas guerras entre duas aldeias vizinhas do sul da França e principalmente dos grupos de crianças que levam o nome das aldeias, os Longevernes, liderados por Lebrac (Vincent Bres), e os Velrans, comandados por Azteca (Theo Bertrand).



 Os simulacros, conforme o conceito de Jean Baudrillard, podem ser simulações, experiências ou códigos que podem ser mais reais do que a realidade, hiper-reais. No filme, a guerra entre os Velrans e os Longevernes parece mais real do que a real que é a guerra civil em Argel no início dos anos 60, na qual os soldados franceses perdem suas vidas, representados en passant no filme por Tintim, irmão de Lanterna (Salomé Lemire), a menina que se veste de menino e que é boa nas lutas e no estilingue. As batalhas entre as pequenas gangues, como chamamos hoje, começam com uma fruta atirado de um estilingue, espadas de madeira, armadilhas e a punição aos derrotados ou capturados pelos inimigos é tirar todos os botões das camisas, o que fará com que eles apanhem dos pais.


 A narrativa se ancora dentro do ponto de vista e da essencialidade de Lebrac para a história, pois ele é o incontestável líder dos Longevernes, mas ainda carrega consigo a responsabilidade de trabalhar para o sustento da casa e a aprovação da mãe (Mathilde Seigner), que conta com ele, já que o pai desapareceu. Ele também é ídolo das duas irmãs caçulas. Na escola, a guerra é interior, pois o garoto é inteligente, mas usa toda a sua astúcia para maquinar novos confrontos com o bando da aldeia rival. Enquanto isso, aprende quem foi Louis Pasteur, citações de grandes pensadores e os conceitos de liberdade e independência com o professor Merlin. Ele nutre o sonho de um dia ser o ministro das Crianças e tem uma paixão por Lanterna, que é recíproca.


  Os momentos engraçados do filme são puxados pelo elenco adulto, pois os professores Merlin (Eric Elmosino), de Longevernes, e Labru (Alain Chabat), de Velran, quando se encontram acabam se ofendendo e rolando pelo chão, protagonizando brigas muito mais toscas do que os meninos. Num clima realmente de guerra, onde ninguém morre, mas se conquista território, e temos códigos e até uma bandeira feita de retalhos de vestido, eles terão que superar os seus dramas pessoais, lutar por uma vida melhor, fazer escolhas como Lebrac, que pode tentar uma bolsa numa escola melhor, mas precisa deixar a mãe sozinha com suas duas irmãs. No quesito estudo, Merlin é uma espécie de professor John Keating (Robin Willians) de Sociedade dos Poetas Mortos, que tenta estimular os alunos a serem mais do que a aldeia no passado já foi líder dos Longevernes. A atuação de Fred Testot como o padre Simon, seja projetando filmes na igreja e obstruindo a lente quando há um beijo na tela ou apitando jogos de futebol e roubando a favor dos Longevernes também assegura muitas risadas da plateia, bem como a senha que deve ser repetida pelos integrantes do grupo, que é sempre as três primeiras letras de uma especialidade ou coisa que o líder gostava ou gosta, ficando quilométrica quando repetida.



Com pequenas vitórias como apontar um traidor no bando adversário ou descobrir que os inimigos cometeram erros de ortografia em pichações ou falar palavras das quais o outro não sabe o que é, como Culhão Murcho ou Coça Saco, o filme é todo bem tramado aproveitando atos inocentes, porém marcantes, das crianças.  A guerra inocente travada pelos grupos das duas aldeias dá ao filme o caráter surpreendente e lembra grandes filmes com protagonismo de crianças, como “Conta Comigo”, “Adeus, Meninos" e até o mais recente francês “O Pequeno Nicolau”. Outra surpresa agradável que vem da França, país com uma produção competente, que não nega a herança de nomes como Abel Gance, George Méliès, Robert Bresson, François Truffaut e Jean-Luc Godard.


A Guerra dos Botões (La Guerre des Boutons)

Direção: Yann Samuell
Roteiro: Yann Samuell, adaptação do livro homônimo de Louis Pergaud
Elenco: Eric Elmosnino, Mathilde Seigner, Alain Chabat, Fred Testot, Vincent Bres, Salomé Lemire, Théo Bertrand e Tristan Vichard.
Duração: 1h49 min
País: França
Ano: 2011
Distribuição: Imovision




Crédito de foto: Imovision / Divulgação

domingo, junho 24, 2012

Cineasta infinito na Cidade Eterna



Antes de começar a discorrer sobre o deleite que foi assistir ao mais recente filme escrito e dirigido por Woody Allen, Para Roma com Amor, quero deixar bem claro que não é possível se estabelecer comparações com o filme anterior, Meia-Noite em Paris. Até porque acho impossível traçar comparativos entre Roma e Paris, que são duas cidades estarrecedoramente belas e apaixonantes, cada uma à sua maneira. Feita essa primeira consideração, vou me ater naquilo que Woody Allen fez aos nos remeter à visão do cineasta sobre Roma, quando pretende contar quatro histórias sobre romanos, italianos do interior que vão a Roma e
americanos na Cidade Eterna. Neste filme, Woody Allen foca nas questões de Roma e a comédia em torno do seu caos, da sua história, dos seus cidadãos.

São quatro histórias abordadas na tentativa de fazer a sua visão do Decameron, texto de Giovanni Bocaccio de 1350, as questões ligadas à sexualidade e à traição nos tempos romanos atuais. Já na introdução, este caos, esta desordem em meio à beleza milenar, aparece na condução do início da história por um guarda de trânsito que apresenta as histórias que serão contadas. Ele está ali junto ao Arco de Tito para organizar o trânsito e quando há um acidente, ele simplesmente grita um palavrão e a confusão está feita. Assim, os personagens vão aparecendo um a um com as suas respectivas histórias. A primeira é a de americana Hailey (Alisson Pill) que carrega um mapa e pede informações a Michelangelo sobre a Fontana Di Trevi. Ele se oferece para acompanhá-la e logo os dois já estão aos beijos, aproveitando o romantismo que é quase um clichê da Cidade Eterna.





O humor inteligente de Allen se oferece para o filme quando o próprio diretor - apelidado por mim aqui de cineasta infinito por ter inteligência, sacadas e humor inesgotáveis, apesar de parecer repetir sempre a mesma neurótica piada - entra em cena com o seu personagem, o diretor de óperas aposentado Jerry, que ouve uma mensagem sobre turbulência no avião da Alitalia que está chegando em Roma e demonstra todo o seu medo de avião (situação já descrita por Luis Fernando Verissimo na crônica "Emergência").





Roma e as histórias que capturam a alma da cidade e do seu povo aparecem com uma crítica a sociedade do espetáculo, apontada por Guy Debord, quando o personagem com uma vida ordinária, Leopoldo Pisanello (Roberto Benigni) vira famoso da noite para o dia. Sátira à imbecilidade e à fugacidade da fama fácil no mundo televisivo, o personagem de Benigni no começo se incomoda com o fato de os jornalistas lhe pedirem sua opinião sobre tudo e para dizer se gosta de dormir de frente ou de bruços ou o que comeu no café da manhã? Allen acertou e errou na escolha do ator, porque Benigni é um dos caras mais engraçados da Itália e ao mesmo tempo é considerado muito sem graça pelo público e crítica brasileiro por seus erros em filmes como Johnny Stechino e acertos em obras como O Pequeno Diabo e A Vida é Bela, este um pouco mais odiado pelos brasileiros por causa da vitória na disputa com Central do Brasil pelo Oscar de Filme Estrangeiro em 1999.




Bom, mas o filme segue e acompanha um casal que chega do interior, de Pernodone, na sempre cheia Stazione Termini, Antonio (Alessandro Tiberi) e Milly (Alessandra Mastronardi) que vão tentar a vida em Roma. Neste núcleo, Woody Allen observa muito bem outra característica comum aos italianos, que é a confusão ao dar informações. Milly simplesmente se perde pelas dobradas destra e sinistra e pontos de referência não-turísticos, enquanto Antonio recebe a visita de uma prostituta com "tutto pago", Anna (a sempre desconcertante Penélope Cruz, parceira de Allen em Vicky Cristina Barcelona). Esta história rende piadas um pouco previsíveis, mas o estilo comédia de erros ligada à traição acaba convencendo.





Representando a linha do fantástico e sensual, está a história do casal formado pelo estudante de arquitetura Jack (Jesse Eisenberg) e Sally (Greta Gerwig). Contando a onipresença do arquiteto John Foy (Alec Baldwin), Jack terá que resistir aos encantos da sedutora atriz Monica (Ellen Page), reeditando a parceria que deu certo em Juno com Eisenberg. O fantástico da história é que Foy saca que Monica quer seduzir Jack e desvenda os segredos de sedução da moça. Caem as máscaras, mas é impossível resistir aos encantos de Monica ("o nome exala sensualidade", comenta John Foy). Vários cenários engrandecem este romance, pois começa no bairro boêmio do Trastevere e segue por visitas ao Coliseu, o Fórum e as Termas de Caracala numa noite chuvosa (a mesma chuva que emociona em "Meia-Noite em Paris").





Por fim é importante comentar de quanto há de eterno na graça e ironias de Woody Allen quando faz piadas com o dinheiro, como quando está tentando convencer o pai de Michelangelo, Giancarlo (Fabio Armiliato) a ser cantor de ópera, pois ele tem um bom desempenho no chuveiro. Ele queria montar "Pagliacci", a ópera de Ruggero Leoncavallo, com Giancarlo, um cantor de chuveiro, que não aceita de modo nenhum o convite, com a família dizendo que ele canta por prazer não por dinheiro. Jerry, o personagem de Allen, responde: "dinheiro dá prazer, quando a gente acaricia as cédulas, elas são verdes, macias e onduladas". Importante ressaltar o timing cômico de Judy Davis que vive Phillys, a esposa psiquiatra de Jerry, que faz uma análise psicológica maravilhosa do fato de a aposentadoria de Jerry estar ligada à morte e ele querer que o agente funerário cante dentro de uma caixa (só não conto mais para não estragar a surpresa).





O filme é agradável, com aquele humor inteligente de Woody Allen que reedita em parte aquelas comédias de costumes e de erros de Allen nos anos 70 e 80, que tem algumas piadas sem graça e imperfeições, mas nada que prejudique o conjunto. A destacar também a trilha que privilegia a música "Nel blu dipinto di blu (Volare)", executada por Domenico Modugno e San Remo Orchestra na Piazza Di Spagna, além de trechos de óperas de Leoncavallo, Verdi e Puccini (como a clássica Nessun Dorma, de Turandot); e também a inclusão no elenco de expressivos atores italianos como a diva dos anos 70 e 80, Ornela Mutti (de Flash Gordon e Crônica de um Amor Louco), como uma atriz famosa, Pia Fusari, além de Francesco de Vito (o Pedro, de A Paixão de Cristo), Donatella Finnochiaro e Ricardo Scarmaccio, ambos de As Idades do Amor e Luca Calvani, de Quando em Roma.



Créditos: Paris Filmes / Divulgação



terça-feira, junho 19, 2012

Acompanhando em Nova York


Uma das coisas que mais gosto em Hollywood é quando um ator consegue manter-se em alto nível de atuação e não cede aos apelos de filmes de ação ou campeões de bilheteria para manter alguma de suas mansões na Califórnia. O caso de Kevin Kline é este. O ator mostra toda a sua boa forma ao viver o excêntrico H.H. (Êitch, Êitch), Henry Harrison, um dramaturgo bon vivant que acaba virando o mentor do jovem professor de literatura Louis Ives (Paul Dano, de Pequena Miss Sunshine) , que vive à maneira do início do século XX, lendo O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald e contente por ter a sua vida conduzida por um narrador imaginário, apesar de ser solitário e sem jeito com as mulheres. O filme em questão é Os Acompanhantes (Extra Man).




Por um incidente na escola em que leciona, Louis é obrigado a se mudar para Nova York e lá é sabatinado por Henry pelo aluguel de um quarto. "Como você é o único dos candidatos que falava inglês, o quarto é seu", afirma HH. O dramaturgo que se mostra excêntrico demais, mas acaba conduzindo o jovem para lugares e ambientes que só a Big Apple pode proporcionar, principalmente mansões e mostras de arte. Com uma cultura erudita, Henry é um acompanhante de mulheres ricas. Assim, Louis se empolga com esta nova vida e também com o seu novo trabalho, no marketing de uma revista ambiental chamada Terra, onde conhece a sua colega vegana e ativista política Mary Powell (Katie Holmes). 






Crédito da foto: Vinny Filmes / Divulgação 

Louis está em busca de algo, ser um escritor, se vestir de mulher, enquanto Harrison, com uma atuação ao nível das melhores de Kline, leia-se "Será que Ele é" e "De Lovely", tem "um estranho poder sobre as pessoas", na definição do próprio Louis. Virar um acompanhante e conviver com Harrison, que mascara a sua decadência e tem ciúmes e interesses nas viúvas ricas as quais acompanha, como Vivian Cudlip (Marian Seldes), passa a ser a nova vida de Louis, que ainda tenta conquistar Mary com convites para almoço, ele adora carne e ela é vegana. "Queria tanto ser vegano, mas adoro queijo", diz ele.

Como toda a boa comédia, esta dirigida a quatro mãos por Shari Springer Berman e Robert Pulcini, a partir de livro de Jonathan Ames, precisaria de coadjuvantes de luxo, atores que inundam a tela com aparições curtas, mas intensas. Este é o caso de John C. Reilly que vive Gershon, um vizinho de HH, que realiza consertos na casa do dramaturgo, não fala mais com ele e aparece no apartamento de surpresa.  Gershon esconde um segredo, usa uma barba longa e anda de bicicleta.

O riso é garantido quando Kevin Kline põe toda a sua organicidade para dançar em casa e às vezes cair duro com dores no ciático ou para pintar falsas meias ou ainda para esfregar uma cachorrinha Yorkshire pelo corpo e passar as suas pulgas para ela. Uma comédia inteligente, perspicaz, com atores versáteis e orgânicos e que acompanha a vida de personagens interessantes que só Nova York poderia produzir.



Ficha técnica:
Filme: Os Acompanhantes
(The Extra Man)
Elenco: Kevin Kline, Paul Dano, John C. Reilly, Marian Seldes, Celia Weston, Patti D'Arbanville, Dan Hedaya, Jason Butler Harner, Alex Burns, Katie Holmes.
Direção: Shari Springer Berman e Robert Pulcini
Gênero: Comédia
Duração: 108 min.
Distribuidora: Vinny Filmes