Conforme o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), o “homem-massa” é um novo bárbaro, que vive na cultura como em estado de natureza, que se ocupa em desocupar-se. Pois o filósofo e atual secretário adjunto da Cultura do Rio Grande do Sul, o filósofo Jéferson Assumção, resolveu transpor ao livro “Homem-Massa – a filosofia de Ortega y Gasset e sua crítica à cultura massificada” o resultado de uma pesquisa e posterior dissertação ao Doutorado em Humanidades e Ciências Sociais da Universidade de León, na Espanha. A obra editada pela Bestiário e Fundación Ortega-Marañon terá lançamento nesta quarta-feira, 17 de outubro, às 19h, na Pinacoteca (República, 409). Em entrevista a este blogueiro, Jéferson fala sobre a obra, sobre os pontos mais importante da filosofia de Ortega y Gasset e sobre o raciovitalismo.
1 - Como foi a concepção do livro e qual a ideia básica da obra. Originalmente era uma dissertação para o Diploma de Estudos Avançados (DEA) na Universidade de León, teve algumas adaptações para ter o ritmo de um livro aberto a outros interessados extra-acadêmicos?
O livro resulta de uma pesquisa sobre o conceito de "homem-massa", dos principais da fiosofia do espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), para a Suficiência Investigadora do programa de Doutorado em Humanidades e Ciências Sociais da Universidade de León, Espanha. Teve alguma adaptação, pequena, para um público mais aberto, mas ainda assim a própria dissertação originalmente segue uma linha, eu diria, um tanto orteguiana, ensaística, menos rígida. Ortega tinha uma forma própria de expor seu pensamento, francamente oposto à linguagem tradicional da filosofia acadêmica. "A clareza é a cortesia do filósofo", ele dizia. E a filosofia, profundo esforço de buscar a superfície, de se manter flutuando no mar do absurdo. Ortega sempre tentou evitar o hermetismo e a mera exibição de "bíceps de feira do tecnicismo acadêmico" - como ele definia. Escreveu na encruzilhada entre filosofia, sociologia, jornalismo e literatura, buscando juntar o que há de mais interessante em cada uma dessas áreas, numa exposição elegante, desportiva, de suas ideias - a maioria publicada em jornais espanhóis e latino-americanos das primeiras décadas do século XX. Ele se incomodava muito com o idealismo e o racionalismo, mas não sentia suficiência em um pensamento meramente vitalista. Por isso seu filosofar é "Raciovitalista". E seus textos coerentes com esta intersecção entre razão (filosofia e sociologia) e vida (jornalismo e literatura). Eu tentei seguir esta forma de exposição, obviamente que com resultados bem menos interessantes que os do filósofo espanhol. Para o livro, escrevi uma Introdução e um Posfácio, nos quais coloco mais frontalmente minhas opiniões sobre o tema e proponho uma forma de abordagem atual para ele. No “corpo do livro”, limito-me a expor o que Ortega pensava, coisas que, hoje em dia talvez soem um pouco anacrônicas e até mesmo preconceituosas a respeito da relação massa e minoria, por exemplo. Mas que, para um pesquisador sobre o tema, é mais importante que tenha um certo nível de objetividade e distanciamento.
Crédito: Eduardo Seidl / Divulgação
Quais os pontos mais importantes da filosofia de Ortega y Gasset e com o que você concorda ou não?
Concordo com sua visão de cultura como “esforço natatório”, gosto muito de sua estética, de sua ética da gratuidade, de sua exigência de criatividade antiqueixosa contra o coitadismo, da maneira como ele considera o homem-massa paciente, mas também agente (ou seja, responsável em certa medida) por sua condição de massa, devido às suas escolhas etc. Acho que a ideia de coimplicação eu-circunstância, ou seja, de que o ser humano não é apenas o sujeito encapsulado em si mesmo, mas também não é apenas circunstância (corpo, psiquismo, língua, pátria etc) mas um amálgama desses dois, de que recebeu gratuitamente uma vida, mas que esta não lhe foi dada pronta e sim por fazer. Que ele tem que fazê-la criativamente, com esforço diário de dar sentido a essa flecha já lançada, que está forçado a esta liberdade (o que ele disse antes mesmo de Sartre). Que pode escolher massificar-se na heteronomia, vivendo as leis do outro, ou, o que seria mais nobre, conforme Ortega, tentar viver de maneira mais autônoma, elegendo o seu programa de vida e sendo responsável ele. Mesmo a mais pobre das pessoas, para Ortega, é portadora dessa vocação inicial do ser humano, dessa chama de humanidade. Claro que as circunstâncias pesam e muitas vezes desanimam, diminuem a alma, o ímpeto. Mas isso não pode resultar em angústia. Ortega chamava isso de o “caráter desportivo da moral”, avesso à asfixia da angústia existencialista e ao queixume de autores materialistas ou religiosos, que ele também evitava. A ideia de que a vida humana individual é a realidade radical, mas que nós somos um ser-com-os-outros, milhões de eus-circunstâncias geradores de um perspectivismo universalmente distribuído inversa à fragmentação relativista, é portadora de uma ideia de humanidade muito rica. Acho tudo isso ainda muito válido para fundamentar uma ideia de sociedade que não desmoralize seus integrantes, que leve em consideração que as pessoas não são apenas circunstâncias, não são apenas zoe, mas biós, duas palavras para designar “vida” em grego, o primeiro mais ligado à biologia e o segundo, cheio de narrativa pessoal, de razão narrativa, como dizia Ortega, à biografia de cada um. Ortega era muito bélico em relação às instâncias que achatavam o ser humano, principalmente o estado ortopédico, da revolução bolchevique, e o mercado de massas, que ele via nascer com a emergência dos Estados Unidos. O homem-massa do início do século XX tinha duas capitais, Moscou e Nova Iorque, ambas cidades representavam simbolicamente grandes centros geradores de heteronomia. E de homens-massa.
3 - Quais as questões do conceito de homem-massa de Ortega y Gasset que devem ser trabalhados nos dias de hoje e quais as soluções para a sociedade que podem ser postas a partir da problematização orteguiana
Bom, eu não posso ser considerado um orteguiano clássico, mesmo tendo feito minha dissertação e a tese de doutorado sobre temas de Ortega e escrito alguns artigos sobre questões orteguianas. Não acho que as soluções por ele apontadas para o problema da heteronomia e da rebelião das massas sejam as mais adequadas. Por exemplo, uma volta das minorias ao seu papel de educador das massas, de pedagogo social, por meio de uma reforma radical da educação, reintroduzindo nela o que falta de vital e retirando o que sobra de razão físico-matemática, geradora dos bárbaros especialistas: aquele que sabe tudo sobre quase nada e balbucia sobre o resto, como um bárbaro. Este, segundo Ortega, é capaz de fazer uma cirurgia muito complexa e ao mesmo tempo ter uma visão infantil sobre como a sociedade se estrutura. Mas ele achava, em sua época, em plena fé na indústria cultural e nas impressoras rotativas, que as minorias intelectuais poderiam, pela exemplaridade, reinvertebrar a sociedade massificada. Era um outro tempo e ele pensava que a “saudável” tensão massa-minoria havia se rompido e disso resultou a rebelião das massas do início do século XX, ou seja, a emergência de um tipo de pessoas que se aproveitou dos benefícios dos avanços técnicos do século XIX e início do XX para massificar-se, desresponsabilizar-se, para colher os frutos da cultura como se esses fossem produtos da natureza.
Crédito: Eduardo Seidl / Divulgação
4 - Um dos capítulos de A Rebelião das Massas que mais me atenho e gosto é "A Época do Senhorzinho Satisfeito" que fala exatamente do homem vulgar, que impõe a sua barbárie e o seu primitivismo. O filósofo falava da história europeia, mas de certo modo a indústria cultural tornou a nos dar muitos homens vulgares na música, na literatura. Qual a sua análise à luz de Ortega y Gasset?
Ele dizia que o homem-massa é um bárbaro que ascendeu pelo alçapão da história e que vive na cultura como em estado de natureza. Fala, mas não sabe de onde vieram as palavras, liga o interruptor e surge a luz, liga o carro e ele parte, como se isso tudo não viesse do acúmulo da cultura, de um passado construído com esforço individual e coletivo. O homem-massa é o mocinho satisfeito pela técnica, que despreza a cultura. Este é o mais contundente diagnóstico orteguiano. Agora, massa não coincide com classe social. Não se trata, em Ortega, de um conceito sociológico e sim filosófico. O rico, o pobre, o classe média podem ser, por escolha de sua vontade e de acordo com o esforço que faz para dar sentido à sua vida um homem-massa ou o que ele chamava de um homem-autêntico. Esse diagnóstico segue vigente, talvez mais vigente hoje do que nos anos 30 do século passado. No entanto, hoje vivemos uma mudança nas condições técnicas que foram fundamentais para a emergência do homem-massa. Sobre isso, escrevi um posfácio chamado “Cultura digital e desmassificação”. Se o diagnóstico de Ortega está certo, ou seja, de que a técnica daquele período engendrou o homem-massa, podemos nos perguntar se as novas tecnologias e o uso cultural delas, a cultura digital, oa ambientes pós-massivos, a cultura colaborativa em rede, a diminuição da centralidade do mediador, das indústrias culturais tradicionais, a desmaterialização dos suportes da arte, do conhecimento e da informação, em que em vez da mão única e do monólogo dos meios de entretenimento temos hoje a muldidirecionaridade dos fluxos de informação, podemos estar gerando um ambiente mais favorável à desmassificação? Tudo depende do uso dessas tecnologias para gerar mais autonomia ou mais heteronomia: consumo, principalmente. Eu acho que hoje, momento em que vivemos ao mesmo tempo as camadas pré-industrial, industrial e pós-industrial, temos também homens solipsistas, homens-massa, homens-massa customizados e pós-homens-massa. Por homens-massa customizado chamo aqueles que a indústria atual faz parecer que suas escolhas são autônomas e que sua produção não é mais em série. São nichos possibilitados pelos avanços técnicos de produção sob demanda de menor custo que dão a impressão de individualidade e pessoalidade nesses produtos. O símbolo maior disso é uma marca de refrigerente colocar nome de pessoas na lata, para consumo de homens-massa customizados. Mas a cultura digital vem dando condições, pelo menos tecnológicas, para se driblar esse uniderecionamento dos desejos, fazendo com que tenhamos mais condições para sair do que Ortega chamava de a crise dos desejos do século XX e a substituição de valores por preços. Vejo com otimismo a possibilidade de apropriação cidadã, autônoma, dessas tecnologias, gerando uma diminuição da dependência do sujeito ao Estado ortopédico ou ao mercado de consumo. Há um terceiro elemento, emergente com a cultura digital: o Comum. Mas isso Ortega jamais poderia imaginar que poderia vir a acontecer como fato social tal como hoje.
5 - Como secretário-adjunto de Estado da Cultura e também ex-coordenador-geral do Plano Nacional do Livro e da Leitura, queria uma opinião sobre como se inseriria o pensamento de Ortega y Gasset e o tua tese de Doutorado nas questões ligadas ao livro e leitura e a um maior acesso à cultura?
Em minha tese “A Ilustração Vital; O Racionalismo de Ortega y Gasset como via para o desenvolvimento de uma sociedade leitora”, ainda inédito, utilizo o conceito de leitor-massa e o contraponho ao de “leitor vital”, ou seja, um tipo de leitura utilitária e pragmática, com respeito a fins mais de ordem técnica, para inserção no mercado ou de simples resposta consumista aos produtos que o mercado inculca como “os melhores livros” etc. Precismos buscar desenvolver leitores vitais, leitores culturais, cuja relação com a leitura ultrapasse o funcional e se torne um hábito cultural que se leva para a vida. Ler porque necessitamos dar sentido a nós mesmos e ao mundo à nossa volta, com mais autonomia do que receber as respostas de fora. Como dizia Paulo Freire, muito orteguianamente: aprender a dizer a própria palavra.