quinta-feira, maio 16, 2013

Ernani Ssó: o fiel escudeiro de Cervantes




Traduzir não signfica necessariamente trair, segundo o tradutor Paulo Henriques Britto, autor do instigante e esclarecedor “A Tradução Literária” (Civilização Brasileira). Em entrevista aos Cadernos de Tradução da UFSC, Britto diz que “a meta do trabalho do tradutor é, ou deve ser, a meu ver, a transparência”. A programação da 6ª FestiPoa Literária prevê para esta quinta-feira uma mesa com o mais novo tradutor de “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes (Penguin/Companhia das Letras), do espanhol ao português, o gaúcho de Bom Jesus Ernani Ssó, de 60 anos. A tradução da obra, com 1.328 páginas, lançada no final de 2012, é quixotesca e prazerosa para Ernani, que sonhava "em poder lê-lo sem ter de consultar o dicionário de três em três linhas". A mesa "Reflexões de um Escudeiro de Cervantes desta quinta-feira, às 18h30min, terá o autor gaúcho Reginaldo Pujol Filho entrevistando Ernani Ssó, no auditório Luís Cosme da CCMQ (Andradas, 736, 4º andar).

A quinta-feira na FestiPoa será de intensa programação de Humor e HQs, das 12h30min às 22h30min, na CCMQ e terá ainda a mesa "Cosas que te Pasan si Estás Vivo", com o cartunista argentino Liniers e os gaúchos Adão Iturrusgarai e Fabio Zimbres, sob mediação de Leo Felipe, às 20h, no auditório Luís Cosme.

Em entrevista a este blogueiro para o Correio do Povo, Ernani Ssó, autor de livros como "O Sempre Lembrado" (1989) e "O Emblema da Sombra" (1996), fala sobre a quixotesca tradução, sobre projetos e a importância da FestiPoa Literária para a literatura gaúcha e brasileira.


Textostelona - A decisão de encarar a hercúlea tradução de Dom Quixote se deu por qual motivo?
Ernani Ssó - Eu amo esse livro. E, como ele é de leitura difícil por causa da linguagem arcaica, sempre sonhei em poder lê-lo sem ter de consultar o dicionário de três em três linhas. Quer dizer, tratei de achar uma editora que me pagasse a tradução pra eu poder ler depois descansadamente.

Textostelona  - Em que aspecto Ernani Ssó foi  fiel escudeiro de Cervantes nesta tradução de Dom Quixote para a Penguin/Companhia das Letras?
Ernani - Em vários aspectos, e todos perigosos. Primeiro: Cervantes é de uma fluência extraordinária, mas se você traduzir literalmente, o texto fica desconexo e arrastado, porque a construção da frase, a pontuação, que funcionam em espanhol, quase nunca funcionam em português. Então tive de achar o ritmo e a voz de Cervantes em português. Segundo: o humor. Cervantes ataca em vários níveis: cenas, jogos de palavras, ditados, descrições irônicas, alusões. Se você não tratar disso tudo, frase a frase, caso a caso, às vezes até tendo de recriar, a graça se perde. Não penso que o tradutor tenha de ser humorista pra enfrentar Cervantes, mas se ele não tiver noção nenhuma de humor, o Quixote vai passar mal, como ficou tristemente demonstrado na tradução mais popular no Brasil, a dos viscondes de Castilho e Azevedo, que só conseguem ser engraçados involuntariamente, com alguns erros bizarros. Pra mim era um ponto de honra que Dom Quixote se mantivesse engraçado em português. Que sentido teria apresentar um dos grandes livros de humor, talvez o maior, sem seu humor? Terceiro: legibilidade. Dom Quixote foi best-seller no seu tempo. Era lido por qualquer pessoa medianamente alfabetizada. Hoje, é um livro difícil inclusive pros espanhóis, porque nesses quatrocentos anos a linguagem mudou muito. Palavras perderam o sentido, ganharam outros, se tornaram pomposas, ou ridículas, ou obscuras. Então, uma das minhas batalhas foi manter o texto com um ar antigo sem que isso atrapalhasse a compreensão do leitor comum. Se um pajem entendia Cervantes há quatrocentos anos, por que um estudante de letras deve ter dificuldade hoje?




Textostelona - Quando falas na compreensão do leitor comum, queres dizer?
Ernani - Entenda-se: quando falo em compreensão, não digo apenas que o leitor não precisa consultar o dicionário a todo momento. Pegue-se a palavra porqueiro ou porcariço, por exemplo. Cervantes não a usa pra fazer graça, porque é ridícula. Ela era neutra naquele tempo. Cervantes apenas informava a profissão de um homem. Hoje essa palavra chama uma atenção indevida na frase. Daí eu preferir um termo mais incolor como guardador de porcos. Há dezenas e dezenas de palavras que hoje seriam compreendidas num clima completamente diferente da intenção original. Não foi nada fácil lidar com elas. A fidelidade ao texto original se refere menos ao sentido direto, ao sentido informativo, digamos, que ao sentido que vem embutido na linguagem, no ritmo, na atmosfera, na sonoridade. Então, é muito menos o que Cervantes ou Shakespeare disse e muito mais como Cervantes ou Shakespeare disse. É preciso achar na língua da tradução o ponto mais próximo desse como disse. Um tradutor não pode ser um burocrata. Ele tem que ter ouvido, astúcia e bom senso, matérias, temo, que dificilmente se ensinam nas aulas de tradução.

Textostelona - No livro A tradução literária, Paulo Henriques Britto aborda duas estratégias a partir da dicotomia estabelecida pelo alemão Friedrich Schleiermacher sobre os métodos de tradução - a domesticação ou a estrangeirização. Qual a tua preferência? 
Ernani - Eu sou pela domesticação, o que, evidentemente, não quer dizer que eu vá botar Sancho Pança ou dom Quixote falando como personagens de Nélson Rodrigues. O território da linguagem é vasto. Quanto mais o tradutor o conhecer, melhor, claro. Diante de uma expressão ou de uma frase mais complicada, eu primeiro trato de compreender e em segundo lugar me pergunto: como nós, brasileiros, dizemos isso? Há uma cena no Quixote em que a mulher de Sancho diz pra ele mandar o filho com muito dinheiro e que ela o mandará “vestido como um palmito”. Houve um tradutor que traduziu isso literalmente. É uma bela estrangeirização, não? Eu modestamente preferi botar o filho do Sancho endomingado.
Detesto traduções em que vemos a língua original sob cada frase. Traduções pro portunhol, como acontece tão seguido aqui no Brasil. Ou essa praga que se vê todo dia em livros ou filmes em inglês: ele deu o seu melhor. Além de não fazer sentido em português, soa muito feio.

Textostelona - Quando e de que forma o Ernani Ssó tradutor dará novamente lugar ao escritor? Há algum novo projeto chegando à luz? 
Ernani - Ano passado saiu, pela Edelbra, No escuro — Sete histórias tenebrosas de bruxa. Agora, em julho, deve sair o segundo volume com mais sete histórias tenebrosas.  Sim, é pra criança e pra adultos que se lembram da infância. Uma mistura complicada de terror e humor. Em fevereiro saiu, pela Artes & Ofícios, Diabos, ogros e princesas. São quatro contos de fadas. Eu sou louco por contos de fadas desde sempre. Enquanto isso, escrevo um romance pra adultos, com outra mistura complicada, sexo e humor. Vamos ver no que dá.



Textostelona - Quais as melhores traduções já feitas do espanhol ao português?
Ernani - Pra falar bem a verdade, gosto de muito poucas, como a de Conversa na Catedral, do Mario Vargas Llosa, feita pela Olga Savary. Há um problema crônico em nossas traduções: o portunhol. Como o espanhol se parece com o português, muita gente pensa que sabe espanhol, daí cai nas armadilhas mais bobas, como Remy Gorga Filho traduzindo “oso” (urso) pra “osso”, que em espanhol é “hueso”, ou Carlos Nejar traduzindo “una oscura pasionaria” (uma escura passiflora, ou flor-da-paixão, ou flor de maracujá) por “um escuro livro da paixão”. Alguém já disse que você lê o Borges em português e é como ver um anúncio de néon apagado. A informação está ali, mas cadê o brilho, a cor? O diabo é que às vezes nem a informação está. Merecíamos mais profissionalismo.

Textostelona - Qual a importância da FestiPoa Literária para a literatura do RS, caro "sempre lembrado" Ernani (referência ao seu clássico livro de 1989, "O Sempre Lembrado")? 
Ernani - Eu, sempre lembrado? Ao contrário, sou o escritor gaúcho menos lembrado. Talvez com razão. Quanto à FestiPoa, a importância começa no nome, que lembra festa, festival. A literatura, como disse Borges, é uma das formas da felicidade. Vamos deixar então a chatice e a solenidade pros chás da academia e outros velórios.


Crédito das fotos: Lúcio Hoppe da Rosa / Divulgação

sexta-feira, maio 10, 2013

.Altair Martins: o anfitrião do banquete literário



Crédito das fotos: Valmir Michelon / Divulgação

Como o rei de Tebas na mitologia grega, chamado de Anfitrião, o escritor gaúcho Altair Martins terá a função de receber e divulgar na 6ª Festa Literária de Porto Alegre os mais de 100 autores de todo o país e demais participantes do evento. O evento será iniciado nesta sexta, às 18h30min, com a Missa para a Igreja do Livro Transformador, com Luiz Ruffato, no Auditório Luís Cosme, da Casa de Cultura Mario Quintana, seguido por mesa com o escritor homenageado Cristovão Tezza, com Altair Martins e Luiz Ruffato, às 19h, no mesmo local. 

Nascido em Porto Alegre no ano de 1975, Altair Martins é romancista e contista, cujo primeiro livro publicado foi o de contos "Como se Moesse Ferro" (WS, 1999), mas desde 1994 ele vem acumulando prêmios por sua obra, sendo o primeiro pelo próprio conto "Como se Moesse Ferro", em 1994, com o 1º lugar no Prêmio Guimarães Rosa, concedido pela Radio France Internationale.  Os seus dois livros mais recentes, o romance "A Parede no Escuro" (Record 2008) e o de contos "Enquanto Água" (Record, 2011) arrebataram os principais prêmios literários de 2008 para cá. O romance levou o Prêmio São Paulo de Literatura, Livro do Ano no  Açorianos de Literatura, além do Destaque Ficção Rede Record e Correio do Povo na 54ª Feira do Livro de Porto Alegre, em 2008. Já a obra de contos foi finalista do Prêmio Jabuti em 2012, vencedora do Livro do Ano do Açorianos e mais recentemente do Prêmio Moacyr Scliar de Literatura, que será entregue segunda-feira, às 14h30min,no Palácio Piratini.          

Nesta entrevista concedida a este blogueiro para o Correio do Povo, Altair Martins fala sobre a função de escritor-anfitrião, que, segundo ele, "é algo tão novo que terei de inventar minha participação", além de abordar o escritor homenageado Cristovão Tezza, as premiações e a importância de eventos do porte da FestiPoa Literária. 

Pergunta  – Das diversas designações e funções que te couberam nesta uma década e meia como escritor atuante, a de anfitrião é algo relativamente novo. Explique-nos como vai ser esta incumbência na FestiPoa Literária.
Altair Martins - Bem, a incumbência do anfitrião é algo tão novo que terei de inventar minha participação. O Fernando Ramos me deixou bem livre para isso. Antes de tudo, penso que o anfitrião tem de ser o escudeiro do homenageado. Por isso, me armei: refiz leituras da obra do Cristovão Tezza. Desde já, estamos a divulgar sua escrita, entre leitores e nos meios de comunicação. Na pré-estreia, por exemplo, uma apresentação dos principais pontos de O espírito da prosa foi mostrada no teatro do SESC. E outras virão no decorrer da programação.

Pergunta – O fato de Cristovão Tezza ser o escritor homenageado, além das indiscutíveis qualidades literárias, parece-nos de suma importância por trazer este dilema entre produção literária e acadêmica, contextualizado pela própria trajetória de Tezza e na obra O Espírito da Prosa. Qual a tua análise desta assertiva?
Altair - Este é um dos pontos de contato entre a minha trajetória e a do Tezza. O escritor-professor (ou seria o contrário?) foi uma das alternativas ao fenômeno do escritor-funcionário público, com uma vantagem: no trabalho, estamos a lidar com a matéria da linguagem, seja prismada na leitura seja na análise crítica e até científica. O aventureiro da palavra acabou dando lugar ao estudioso, e ainda estamos a avaliar os efeitos disso tudo.



Pergunta – A Parede no Escuro e Enquanto Água colheram prêmios significativos no horizonte nacional como o Prêmio São Paulo e o Moacyr Scliar, com universos temáticos, gêneros e formas de narrar distintas. O Altair se reinventa de que forma a cada livro?
Altair - Depois de A Parede no Escuro me senti numa encruzilhada: meu projeto de ser escritor seguiria a trilha aberta pelo romance (os vários narradores entrecruzados) ou eu me reinventaria. Optei pela segunda via. Pretendo (e é bem pretensão) que em cada livro o meus leitores (não são muitos; me leiam por favor) me procurem até reconhecer que estou ali justamente por não estar. Mudar de gênero é sempre um caminho; repensar a própria escrita é outro. Não repito narradores. Não gostaria de repetir livros.

Pergunta – Fale-nos sobre o seu novo projeto. Pelo que sabemos tinha o título de Terra Avulsa e estaria para ser publicado ainda este ano.
Altair - Terra avulsa será defendido no doutorado da UFRGS logo, juntamente com algumas teses sobre o romance contemporâneo, nas quais discuto narrador, espaço, herói, autoria, entre outros temas. O contrato do romance já está assinado. No momento refaço fotos que participam do texto e cuja resolução não serve. O livro passará ainda por algumas revisões. Minha ideia é a de que saia até agosto. Caso contrário, penso em publicá-lo só em 2014. Sou chato e não tenho pressa.

Pergunta – Eventos como o FestiPoa Literária nos fazem exultar pela abrangência e capacidade de debater prementes questões da literatura. Como analisas este tipo de evento?
Altair - A FestiPoa nasceu democraticamente, sob organização desse louco maravilhoso que é o Fernando Ramos, que soube agregar os quixotes do livro gaúcho. No começo, falávamos para nós mesmos. Mas a guerrilha deu efeito: hoje, são convidados nacionais e internacionais, mais de cem, multiplicando atividades que vão da leitura (da formação de leitores), do debate, da apresentação, das oficinas, às performances – uma característica desde a primeira festa. E tudo gratuito, no friozinho de maio, em horário agradável de happy hour (a maioria dos eventos). Serão dez dias maravilhosos.

quinta-feira, maio 09, 2013

"O livro pode transformar as pessoas"

Crédito das fotos: Tomás Rangel / Divulgação

A 6ª Festa Literária de Porto Alegre, Festpoa, está batendo à porta da capital gaúcha. Na sexta-feira, serão iniciados os trabalhos de um dos grandes eventos de literatura da cidade, às 18h30min, no Auditório Luís Cosme, da Casa de Cultura Mario Quintana (Andradas, 736, 4º andar). Fará parte do evento a "Missa para a Igreja do Livro Transformador", com o escritor mineiro de Cataguases radicado em São Paulo, Luiz Ruffato, de 52 anos. O ensinamento do autor, entrevistado por este blogueiro para o Correio do Povo, é: "O livro pode transformar as pessoas".

Ruffato é uma daquelas pessoas cujo destino destino seria de rotina e desesperança, pois veio de família pobre, de pai e mãe semianalfabetos, até que a leitura de um livro (Bábi Iar, de Anatoly Kusnetsov) aos 12 anos transformou a sua vida. O movimento da Igreja do Livro Transformador consiste em depoimentos de escritores e pessoas em geral sobre o livro que transformou suas vidas, em vídeos veiculados pelo youtube e redes sociais. 

Também na sexta, 19h, no Auditório Luís Cosme, Ruffato participa de mesa com o escritor homenageado da FestiPoa Literária, Cristovão Tezza, e com o anfitrião Altair Martins. De 2001 a 2012, o escritor mostrou a preocupação em falar das figuras comuns da classe média baixa e seus destinos numa sociedade cada vez mais excludente, com obras do quilate da premiada "Eles Eram Muitos Cavalos", de 2001, e da série "Inferno Provisório", com cinco livros, o último publicado em 2012: "Domingos sem Deus". Em entrevista a este blogueiro para o Correio do Povo, Ruffato fala de assuntos desde a transformação de uma pessoa pelo livro até sobre a amizade e admiração pelo homenageado Cristovão Tezza. 



Pergunta - Na FestiPoa Literária, a tua primeira atividade será a Missa para a Igreja do Livro Transformador. Esclareça-nos o que é este movimento. 

Luiz Ruffato - Na verdade, toda esta ideia nasceu quase de uma brincadeira. Como participo muito de feiras e eventos literários, sempre conto a minha história, fui operário têxtil, torneiro mecânico, com pai e mãe emianalfabetos, nascido em Cataguases (MG) e o livro que transformou a minha vida aos 12 anos de idade foi "Bábi Iar", do russo, na época ucraniano, Anatoly Kusnetsov, que tratava do massacre de judeus pelos alemães durante a Segunda Guerra. O livro realmente transformou a minha vida e pode transformar as pessoas. Numa mesa em Curitiba, com o Rogério Pereira, do Rascunho, uma pessoa se apresentou, Emanuele, e resolveu fazer disto uma coisa série. Gravei o depoimento em Curitiba, que virou a sede mundial. 

Pergunta - No Brasil, o ambiente para o livro, a leitura e a literatura não é dos melhores?
Ruffato -
 Na verdade, no nosso país a destinação é quase sempre trágica. Algumas pessoas são privilegidas, pois acesso à saúde, educação e leitura são privilégios. Sobre a leitura, a elite sempre deixou claro que era uma exclusividade dela. Não é obrigatório que se goste de ler, mas que pelo menos se tenha o acesso. Na escola, o destino nunca foi o de se tornar um país de leitores. O professores de Português e de Línguas não gostam de literatura. A academia, as universidades, talvez gostem de teoria literária, mas nem sempre de literatura. Quando digo que leio 70 ou 80 livros por ano, as pessoas me olham como um extraterrestre. 

Pergunta - Quando é que foi lapidado o escritor em Luiz Ruffato?
Ruffato -
 A minha decisão de me tornar escritor é evidentemente política. O fato de eu desistir de ser torneiro mecânico com formação no Senai para fazer jornalismo foi considerado estranhíssimo no meu meio. Eu via na literatura brasileira uma temática ligada à globalidade no mundo rural, todas as classes sociais incluídas, os ricos, a burguesia, as classe médias alta e média e também os bandidos, proletariado, favelado estereotipado, mas a classe média baixa não existia na literatura brasileira. Era tão pouca gente escrevendo sobre o tema que mal dava para encher uma Kombi. Era quase uma obrigação minha e os meus oito livros de prosa, de ficção, trataram da classe média baixa, da pessoa comum, desesperançada, produto da saída do meio rural para o industrial da década de 50 do século XX para cá, que é a maioria da população brasileira. 

Pergunta - O que podes dizer do amigo e homenageado da FestiPoa Literária, Cristovão Tezza?
Ruffato - 
Na verdade, a gente é bem amigo. Na feiras e festivais literários, alguns escritores acabam se reunindo por grupos de afinidades. Gosto muito da obra do Tezza. Ele tem uma obra consistente do ponto de vista literário. A minha preocupação é entender a sociedade brasileira como um todo. Os personagens deles diferem dos meus. São personagens de classe média mas são muito bem resolvidos, têm uma visão bastante crítica da sociedade, só que por outro ângulo. Ele tem dois ou três livros absolutamente admiráveis. Cito "O Fantasma da Infância", como exemplo, e também os seus contos. É um dos caras que melhor trabalha com a autorreflexão em sua obra. 

Pergunta - Gostaria que você falasse da sua relação com Porto Alegre?
Ruffato - 
Eu tenho várias ligações. A primeira é evidente. Porto Alegre é a única cidade do país que eu moraria, fora São Paulo. Na cidade, você tem uma preocupação com o cidadão como poucas cidades no país. O transporte público, se não é o melhor, funciona. Tem um rio fantástico (o Guaíba). O índice de leitura é quase o dobro do resto do país. Tenho uma estatística minha que depois do Rio de Janeiro é o lugar que mais estuda e discute a minha obra, além de ter uma literatura exuberante. O livro "Os Ratos", de Dyonelio Machado é uma obra-prima, muito subestimada no Brasil. 

Pergunta - O que o forno de Ruffato prepara para os seus leitores?
Ruffato -
 O meu projeto literário até então foi muito claro, mas com "Domingos sem Deus" éu dei por encerrada esta fase. Estou trabalhando num projeto sob o título de "Flores Artificiais". É um conjunto de histórias, todas sendo ouvidas por um personagem (protagonista) em vários lugares do mundo. As duas únicas relações com o meu trabalho até então são o experimentalismo formal e a questão de pertencimento dos personagens. Eles estão todos deslocados no espaço - uma francesa em Buenos Aires, um inglês na África, um português em Angola e assim por diante. 

quarta-feira, maio 08, 2013

"A literatura cria a felicidade"




A 6ª Festa Literária de Porto Alegre - FestiPoa Literária inicia na próxima sexta, 10 de maio, e segue até o dia 19, homenageando neste ano o escritor Cristovão Tezza, de 60 anos. Catarinense radicado em Curitiba ele é autor de entre outras obras de "A Suavidade do Vento", "Trapo", "O Filho Eterno" e "O Espírito da Prosa". A novidade desta edição da festa será o papel de escritor-anfitrião, a ser encarnado pelo gaúcho Altair Martins, autor de obras como "A Parede no Escuro" e "Enquanto Água". 

Além de Tezza e Altair, a festa literária terá a presença de mais de 100 autores, entre os quais Antonio Cicero, Daniel Galera, José Castello, Vicente Cecim, Luiz Ruffato, João Gilberto Noll e Sergio Sant’Anna. “O objetivo da FestiPoa é tentar questionar, contestar, provocar o debate e a reflexão acerca da produção literária contemporânea”, afirma o idealizador Fernando Ramos. Leituras, lançamentos de livros, oficinas, cursos, debates, shows, filmes, saraus, concurso literário, performances estão na programação que tem entrada franca e pode ser acessada no site oficial do evento.

Tezza estará em Porto Alegre na sexta para a abertura da FestiPoa, em mesa com Altair Martins e Luiz Ruffato, às 19h no Auditório Luís Cosme, da Casa de Cultura Mario Quintana. Nesta entrevista ao Correio do Povo, reproduzida aqui no blog textostelona, ele fala sobre o ofício de escrever, a prosa, a festa literária e novos projetos, entre outros temas. 




Pergunta - Como é uma pergunta que perpassa grande parte do livro O Espírito da Prosa, não podia deixar de fazê-la. O que leva alguém a escrever?
Cristovão Tezza - Em momentos históricos e em situações diferentes são muitas as razões: o desejo de mudar o mundo, a vontade de agradar, o espírito da imitação, a ânsia de prestígio, a luta por dizer umas boas verdades - mas tudo isso diz muito pouco, quando a escrita começa a tomar conta do escritor. Se eu penso no que a literatura tem de mais forte, eu diria que o que nos leva a escrever é a infelicidade. Pessoas felizes não escrevem: vão ao cinema, namoram sem traumas, vivem tranquilas. Os infelizes é que se trancam num quarto e passam horas e horas escrevendo, sem ninguém pedir e sem nenhuma certeza de nada. Mas, para a imagem não ficar muito trágica, é bom lembrar que, se é fruto da infelicidade, por outro lado a literatura cria felicidade.

Pergunta – Qual é o espírito da prosa de Cristovão Tezza?
Tezza - Uma pergunta difícil - cheguei a escrever um livro com esse título para tentar entender o espírito da prosa. O fundamento da prosa são os outros, da linguagem à visão de mundo. A prosa descentraliza a linguagem, ela é sempre menos um discurso e mais uma conversa.

Pergunta – A tua biografia literária é algo que nos faz crer que é possível um Brasil de grandes autores, mesmo com tantos estímulos. Como seriam os estímulos ideais para um Brasil mais literário? 
Tezza - Essa é uma área em que não há milagres: o estímulo fundamental é a formação básica do leitor, que começa lá na creche. Se nos restasse apenas uma única verba para o estímulo à leitura, toda ela deveria se dirigir inteira ao ensino fundamental, à universalização do acesso à palavra escrita. Não há processo civilizador sem leitura, e o Brasil está muito atrasado nesta área. Fomos um país modernizado pela televisão, que é pura oralidade; está na hora e o livro recuperar o terreno perdido, aproveitando até mesmo os recursos do computador e da internet, que voltaram a colocar a palavra escrita num primeiro plano, por incrível que pareça.

Pergunta – Como te sentes por seres o escritor homenageado da 6ª FestiPoa Literária, num festival com participação de autores do quilate de Luiz Ruffato, Altair Martins, Vicente Cecim, José Castello e Marcelino Freire?
Tezza - Fico muito feliz. Sempre fui um pouco refratário às homenagens - bicho-grilo dos anos 70, não fui nem à minha própria formatura em Letras - mas o convite da FestPoa, é claro, foi irrecusável. É um prazer imenso voltar mais uma vez a Porto Alegre para participar deste Festival, e mais ainda como autor homenageado. E isso tem um sabor muito especial por ser o Rio Grande do Sul um Estado com uma presença fortíssima na literatura brasileira, ontem e hoje. É uma honra partilhar desta tradição.

Pergunta – Tu começaste trabalhando com teatro de vanguarda e alternativo no final dos anos 60 e 70 e depois te envolveste com a literatura. Como analisas o fato de livros teus terem recebido adaptações dramatúrgicas? 
Tezza - A adaptação de "O filho eterno" para o teatro foi uma das coisas mais surpreendentes da minha vida de escritor. Gostei muito da adaptação e da montagem, simplesmente maravilhosa. Se o tema do livro já era difícil na literatura, no teatro a dificuldade aumenta muito, mas os Atores de Laura deram conta do desafio. E o mesmo grupo está montando agora "Beatriz", uma peça baseada no romance "Um erro emocional" e nos contos de "Beatriz". Para o cinema, tenho duas adaptações contratadas: "O filho eterno", com produção de Rodrigo Teixeira, e "Juliano Pavollini", que será dirigido pelo Caio Blat.

Pergunta – Pergunta sempre presente, esta não poderia faltar: sobre o que trata o próximo projeto e quando travaremos contato com ele?
Tezza - Agora em maio está saindo pela Record "Um operário em férias", uma coletânea de crônicas organizadas por Christian Schwartz, com ilustrações de Benett. E já há um bom tempo estou escrevendo um novo romance, que vai me tomar mais um ano de trabalho, no mínimo. Por isso estou viajando pouco em 2013, recusando muito convite. Preciso me concentrar no novo livro. Já não tenho a mesma energia de antigamente, quando conseguia fazer tudo ao mesmo tempo. Hoje, escrever exige concentração total.


Crédito das fotos: Joel Rocha / Divulgação

quarta-feira, maio 01, 2013

Quem vai ficar com Marion?





Julie Delpy pode ser considerada o frescor em pessoa em termos de roteiro e direção de cinema. Com este seu "2 Dias em Nova York", a bela Delpy, (eternizada nas telas pelas suas atuações em "Antes do Amanhecer" e "Antes do Pôr-do-Sol" junto a Ethan Hawke) conseguiu que o filme fosse chamado por um crítico do New York Times como "tão bom quanto um Woody Allen vintage". O crítico tem razão e o público agradece por ela ter nos proporcionado a sequência do inteligentíssimo "2 Dias em Paris" (a propósito no dia 7 de junho estreia "Antes do Anoitecer", novamente sob direção de Richard Linklater, com Delpy e Hawke na Grécia, casados e com filhos).

Se no primeiro filme de 2007, a premissa era a visita à casa dos pais em Paris, da independente e volúvel fotógrafa Marion (Julie Delpy) com o namorado Jack (Adam Goldberg), na sequência de 2012, que estreou sexta passada nos cinemas,  Delpy trabalhou o roteiro de uma hilariante comédia de costumes, com os atores Alex Nahon (o personagem Manu) e Alexia Landeau (Rose, a irmã de Marion).



No plot, está o que teria acontecido com Marion depois do primeiro filme, isto é, ela casou com o jornalista e radialista Mingus (Chris Rock) e tem um filho da relação com Jack, Lulu, e ainda o gato Jean-Luc. Mingus tem uma filha, Willow. Eles vivem tranquilos num pequeno apartamento em Nova York até a chegada da família de Marion de Paris. E não é uma chegada qualquer. Jeannot (Albert Delpy, o pai de Julie na vida real) perdeu a esposa e mãe de Marion e está de luto. Ele chega a NY acompanhado da filha Rose e do namorado Manu,  ex de Marion, sendo retido na Alfândega por estar carregando quilos de linguiça e queijos.

Não é preciso dizer que desde o início Jeannot brinca com Mingus, não entendendo o inglês do novo genro, a irmã Rose dá em cima do cunhado, Manu tenta se auto-afirmar, dizendo que foi namorado de Marion e a vida do pacato casal vira do avesso. O clima de comédia de costumes é perfeito. O choque de culturas do primeiro filme continua. Enquanto em "2 Dias em Paris", Jack tinha dificuldade em admitir a independência quase amor livre de Marion, nesta sequência as confusões são com o efeito avassalador que a família de Marion tem numa relação que parecia estabilizada entre ela e Mingus.



Não há convenção que não seja derrubada com aquele humor sarcástico e inteligente de Delpy executado por todo o elenco. Marion organiza uma exposição de suas fotografias mais íntimas em momentos pré e pós ao ato sexual e fetiches e além disso vende a sua alma, literalmente, junto com as fotografias. O comprador é suspense, mas dá para dizer que trabalhou em Brown Bunny numa cena bem explícita. Manu, o ex de Marion, acha estranho que Mingus seja o único negro de Nova Iorque que não fume um baseado. Rose e Manu rimam em piada interna o nome de Mingus com cuninlingus (sexo oral). O porteiro eletrônico do apartamento de Marion e Mingus tem um som estridente, típico daquelas comédias nas quais o toque interrompe algo importante que estava sendo falado. Além disto, Jeannot continua arranhando carros mal-estacionados na rua. De quebra, temos ainda aquela trilha que muito bem poderia estar num filme de Woody Allen, com boa parte das músicas compostas por Julie Delpy, além de clássicos do jazz, e aquele efeito de fotos em sequência já utilizado em "2 Dias em Paris" para contar parte da história, que dão uma excelente dinâmica à narrativa.

Para aliviar um pouco e não contar todas as piadas do filme, que são inúmeras, a narrativa é iniciada por Marion e Mingus contando a história desta visita parisiense a Nova York para sua filha com Mingus, tempos depois, por meio de fantoches. Mingus é vidrado em Barack Obama e boa parte do papo com os franceses em inglês macarrônico, gestos ou em francês é sobre o primeiro presidente negro americano. Como em "2 Dias em Paris", quando Jack se dá conta que não conhece Marion e que não sabe se vai ficar com Marion, Mingus acaba também questionando quem é Marion de verdade. Ele não sabe deste seu lado volúvel, instável, independente.



Em entrevista para divulgar o filme a própria Julie Delpy fala sobre este aspecto do roteiro desenvolvido com Alex e Alexia (Manu e Rose): “Antes da visita familiar, o relacionamento do casal está bem. Porém, depois temos os dois dias de visita – um período delimitado, algo interessante – quando a família dela aparece e isso desperta todos os tipos de situações para ela.” As situações como a morte da mãe, abertura da exposição de arte, o questionamento sobre a existência da alma e a venda da alma para um anônimo, além dos ex-namorados e de uma família nada normal. “Eu quis que tudo isso emergisse para que Mingus visse e questionasse ‘É você mesmo?”, acrescenta a diretora e roteirista, que dá um real frescor à comédia, uma lição para estas comédias brasileiras de gosto duvidoso, tipo "De Pernas Pro Ar" ou "E Aí, Comeu?".



2 DIAS EM NOVA YORK
DIREÇÃO: JULIE DELPY
ELENCO: JULIE DELPY, CHRIS ROCK, ALBERT DELPY,  ALEXIA LANDEAU,   ALEX NAHON,  DYLAN BAKER, KATE BURTON, DANIEL BRÜHL, MALINDA WILLIANS E OUTROS.
ROTEIRO: JULIE DELPY e ALEXIA LANDEAU
HISTORIA: DE JULIE DELPY, ALEXIA LANDEAU E ALEX NAHON, baseado em personagens de JULIE DELPY
ANO: 2012
DURAÇÃO: 1H36MIN