Traduzir não signfica necessariamente trair, segundo o tradutor Paulo Henriques Britto, autor do instigante e esclarecedor “A Tradução Literária” (Civilização Brasileira). Em entrevista aos Cadernos de Tradução da UFSC, Britto diz que “a meta do trabalho do tradutor é, ou deve ser, a meu ver, a transparência”. A programação da 6ª FestiPoa Literária prevê para esta quinta-feira uma mesa com o mais novo tradutor de “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes (Penguin/Companhia das Letras), do espanhol ao português, o gaúcho de Bom Jesus Ernani Ssó, de 60 anos. A tradução da obra, com 1.328 páginas, lançada no final de 2012, é quixotesca e prazerosa para Ernani, que sonhava "em poder lê-lo sem ter de consultar o dicionário de três em três linhas". A mesa "Reflexões de um Escudeiro de Cervantes desta quinta-feira, às 18h30min, terá o autor gaúcho Reginaldo Pujol Filho entrevistando Ernani Ssó, no auditório Luís Cosme da CCMQ (Andradas, 736, 4º andar).
A quinta-feira na FestiPoa será de intensa programação de Humor e HQs, das 12h30min às 22h30min, na CCMQ e terá ainda a mesa "Cosas que te Pasan si Estás Vivo", com o cartunista argentino Liniers e os gaúchos Adão Iturrusgarai e Fabio Zimbres, sob mediação de Leo Felipe, às 20h, no auditório Luís Cosme.
Em entrevista a este blogueiro para o Correio do Povo, Ernani Ssó, autor de livros como "O Sempre Lembrado" (1989) e "O Emblema da Sombra" (1996), fala sobre a quixotesca tradução, sobre projetos e a importância da FestiPoa Literária para a literatura gaúcha e brasileira.
Textostelona - A decisão de encarar a hercúlea tradução de Dom Quixote se deu por qual motivo?
Ernani Ssó - Eu amo esse livro. E, como ele é de leitura difícil por causa da linguagem arcaica, sempre sonhei em poder lê-lo sem ter de consultar o dicionário de três em três linhas. Quer dizer, tratei de achar uma editora que me pagasse a tradução pra eu poder ler depois descansadamente.
Textostelona - Em que aspecto Ernani Ssó foi fiel escudeiro de Cervantes nesta tradução de Dom Quixote para a Penguin/Companhia das Letras?
Ernani - Em vários aspectos, e todos perigosos. Primeiro: Cervantes é de uma fluência extraordinária, mas se você traduzir literalmente, o texto fica desconexo e arrastado, porque a construção da frase, a pontuação, que funcionam em espanhol, quase nunca funcionam em português. Então tive de achar o ritmo e a voz de Cervantes em português. Segundo: o humor. Cervantes ataca em vários níveis: cenas, jogos de palavras, ditados, descrições irônicas, alusões. Se você não tratar disso tudo, frase a frase, caso a caso, às vezes até tendo de recriar, a graça se perde. Não penso que o tradutor tenha de ser humorista pra enfrentar Cervantes, mas se ele não tiver noção nenhuma de humor, o Quixote vai passar mal, como ficou tristemente demonstrado na tradução mais popular no Brasil, a dos viscondes de Castilho e Azevedo, que só conseguem ser engraçados involuntariamente, com alguns erros bizarros. Pra mim era um ponto de honra que Dom Quixote se mantivesse engraçado em português. Que sentido teria apresentar um dos grandes livros de humor, talvez o maior, sem seu humor? Terceiro: legibilidade. Dom Quixote foi best-seller no seu tempo. Era lido por qualquer pessoa medianamente alfabetizada. Hoje, é um livro difícil inclusive pros espanhóis, porque nesses quatrocentos anos a linguagem mudou muito. Palavras perderam o sentido, ganharam outros, se tornaram pomposas, ou ridículas, ou obscuras. Então, uma das minhas batalhas foi manter o texto com um ar antigo sem que isso atrapalhasse a compreensão do leitor comum. Se um pajem entendia Cervantes há quatrocentos anos, por que um estudante de letras deve ter dificuldade hoje?
Textostelona - Quando falas na compreensão do leitor comum, queres dizer?
Ernani - Entenda-se: quando falo em compreensão, não digo apenas que o leitor não precisa consultar o dicionário a todo momento. Pegue-se a palavra porqueiro ou porcariço, por exemplo. Cervantes não a usa pra fazer graça, porque é ridícula. Ela era neutra naquele tempo. Cervantes apenas informava a profissão de um homem. Hoje essa palavra chama uma atenção indevida na frase. Daí eu preferir um termo mais incolor como guardador de porcos. Há dezenas e dezenas de palavras que hoje seriam compreendidas num clima completamente diferente da intenção original. Não foi nada fácil lidar com elas. A fidelidade ao texto original se refere menos ao sentido direto, ao sentido informativo, digamos, que ao sentido que vem embutido na linguagem, no ritmo, na atmosfera, na sonoridade. Então, é muito menos o que Cervantes ou Shakespeare disse e muito mais como Cervantes ou Shakespeare disse. É preciso achar na língua da tradução o ponto mais próximo desse como disse. Um tradutor não pode ser um burocrata. Ele tem que ter ouvido, astúcia e bom senso, matérias, temo, que dificilmente se ensinam nas aulas de tradução.
Textostelona - No livro A tradução literária, Paulo Henriques Britto aborda duas estratégias a partir da dicotomia estabelecida pelo alemão Friedrich Schleiermacher sobre os métodos de tradução - a domesticação ou a estrangeirização. Qual a tua preferência?
Ernani - Eu sou pela domesticação, o que, evidentemente, não quer dizer que eu vá botar Sancho Pança ou dom Quixote falando como personagens de Nélson Rodrigues. O território da linguagem é vasto. Quanto mais o tradutor o conhecer, melhor, claro. Diante de uma expressão ou de uma frase mais complicada, eu primeiro trato de compreender e em segundo lugar me pergunto: como nós, brasileiros, dizemos isso? Há uma cena no Quixote em que a mulher de Sancho diz pra ele mandar o filho com muito dinheiro e que ela o mandará “vestido como um palmito”. Houve um tradutor que traduziu isso literalmente. É uma bela estrangeirização, não? Eu modestamente preferi botar o filho do Sancho endomingado.
Detesto traduções em que vemos a língua original sob cada frase. Traduções pro portunhol, como acontece tão seguido aqui no Brasil. Ou essa praga que se vê todo dia em livros ou filmes em inglês: ele deu o seu melhor. Além de não fazer sentido em português, soa muito feio.
Textostelona - Quando e de que forma o Ernani Ssó tradutor dará novamente lugar ao escritor? Há algum novo projeto chegando à luz?
Ernani - Ano passado saiu, pela Edelbra, No escuro — Sete histórias tenebrosas de bruxa. Agora, em julho, deve sair o segundo volume com mais sete histórias tenebrosas. Sim, é pra criança e pra adultos que se lembram da infância. Uma mistura complicada de terror e humor. Em fevereiro saiu, pela Artes & Ofícios, Diabos, ogros e princesas. São quatro contos de fadas. Eu sou louco por contos de fadas desde sempre. Enquanto isso, escrevo um romance pra adultos, com outra mistura complicada, sexo e humor. Vamos ver no que dá.
Textostelona - Quais as melhores traduções já feitas do espanhol ao português?
Ernani - Pra falar bem a verdade, gosto de muito poucas, como a de Conversa na Catedral, do Mario Vargas Llosa, feita pela Olga Savary. Há um problema crônico em nossas traduções: o portunhol. Como o espanhol se parece com o português, muita gente pensa que sabe espanhol, daí cai nas armadilhas mais bobas, como Remy Gorga Filho traduzindo “oso” (urso) pra “osso”, que em espanhol é “hueso”, ou Carlos Nejar traduzindo “una oscura pasionaria” (uma escura passiflora, ou flor-da-paixão, ou flor de maracujá) por “um escuro livro da paixão”. Alguém já disse que você lê o Borges em português e é como ver um anúncio de néon apagado. A informação está ali, mas cadê o brilho, a cor? O diabo é que às vezes nem a informação está. Merecíamos mais profissionalismo.
Textostelona - Qual a importância da FestiPoa Literária para a literatura do RS, caro "sempre lembrado" Ernani (referência ao seu clássico livro de 1989, "O Sempre Lembrado")?
Ernani - Eu, sempre lembrado? Ao contrário, sou o escritor gaúcho menos lembrado. Talvez com razão. Quanto à FestiPoa, a importância começa no nome, que lembra festa, festival. A literatura, como disse Borges, é uma das formas da felicidade. Vamos deixar então a chatice e a solenidade pros chás da academia e outros velórios.
Crédito das fotos: Lúcio Hoppe da Rosa / Divulgação