Depois da morte de Andrei Tarkovsky não existe
outro cineasta no mundo capaz de causar a sensação que Aleksandr Nicolaievitch
Sokurov (que retratou o mestre, diretor de Solaris e Nostalgia, em Melancolia
de Moscou) causa ao tratar de temas banais como a relação entre pai, mãe e
filho, grandes líderes mundiais ou personagens literários e principalmente
criar uma linguagem lírica, que atravessa o tempo para tratar de grandes museus
do mundo, a saber o Hermitage, em São Petersburgo, com o inigualável plano-sequência
de 2002, com mais de 3 mil figurantes, “Arca Russa” e agora com seu “Francofonia
– Louvre sob Ocupação”, que traz toda a saga de dois homens, um alemão e outro
francês, para manter intactas, à prova de saque nazista as obras do Louvre e de
outros grandes museus da França. Conde Franziskus Wolff-Metternich (Benjamin
Utzerath) e Jacques Jaujard (Louis-Do de Lencquesaing) são dois homens
resistindo à sina da ocupação nazista na França, no verão de 1940. Por isso,
novamente o sentido bíblico de Arca, de dois homens sendo os Noés do século XX
e salvando a arte de 6 mil anos antes de Cristo durante a Segunda Guerra
Mundial. Por isto, o batismo deste texto como A Arca Francesa.
Como é um artesão da película (seja ela já
digital), Sokurov não escolhe o caminho convencional. Desta vez, a narrativa é
iniciada por fotos ligadas ao início do século XX, e principalmente pela
constatação que dois grandes nomes da literatura russa: Anton Pavlovitch
Tchekhov e Liev Tolstoy estão mortos e não respondem a estímulos. Sokurov usa
três narradores. Ele mesmo e outros dois com câmera subjetiva e faz um apanhado
do início daquele século, com a Primeira Guerra Mundial e outros fatos até
chegar à ocupação nazista na França. A metalinguagem do filme é assegurada por
um momento em que Sokurov no seu apartamento conversa por skype com um capitão
de um navio, Dirk, que leva obras de arte por um mar agitado. Enquanto conversa
com este capitão, algumas imagens do filme aparecem no copião. O navio
atravessando o mar revolto é o gancho para falar como muitas das obras chegam
ao Louvre, nos séculos anteriores. O Louvre é o personagem principal do filme,
assim como Metternich e Jaujard. A pergunta do narrador dá a clareza à grandeza
deste museu e do museu retratado em Arca Russa: “O que seria da França sem o
Louvre e Leningrado sem o Hermitage?”
Jaujard e Metternich pelos atores Louis-Do de Lencquesaing e Benjamin Utzerath |
Ao som da música de Gustav Mahler, “Kindertotenlieder”,
o narrador onírico, onisciente, o fantasma do Hermitage, agora é Sokurov
conversando com seu filme, a fantasma Marianne (Johanna Korthals Altes) bradando pela
liberdade, igualdade, fraternidade como metáfora francófona e Napoleão
Bonaparte (Vincent Nemeth) dizendo que o museu é ele, que as obras são ele, que
todas elas são resultados de suas campanhas vitoriosas. O drone que faz imagens
aéreas de Paris para encontrar o Louvre dá uma sensação de leveza à obra do
cineasta russo, que precisa dar toda a dimensão do Louvre, da Segunda Guerra,
como no momento em que trata do Cerco de Leningrado, que durou um ano, com
corpos espalhados pela cidade, sendo abandonados pela rua, jogados em grandes
valas, o importante era resistir e sobreviver. Didaticamente, o cineasta
explica como foi erguido o Louvre desde o século XII e com quais intenções até o projeto de Pierre Lescot no século XVI.
O colaboracionismo do fantoche nazista, o Marechal Pétain e o governo
de araque de Vichy, que não foi ocupado pelos nazistas, também recebe atenção das lentes e da recuperação de imagens de Sokurov. As mais diversas metáforas
ligadas aos quadros, como a "Monalisa", de Da Vinci, a Vitória de Samotrácia, uma escultura assíria de centenas de anos
antes de Cristo, a "Jangada da Medusa", de Theodore Gericault, aparecem nesta polifonia
sokuroviana, na qual o passado e o presente se misturam, como naquela Arca Russa de 2002. A preocupação do narrador ante
à ocupação nazista é “Como se comportará o vencedor diante do centro da cultura
mundial?”. Voltando ao passado, o Napoleão fantasma que vaga pelo Louvre se pergunta:
“Porque eu fiz a guerra? Pela arte”.
Alexsandr Sokurov e a "Jangada da Medusa", de Gericault |
Ao falar de esculturas assírias e da sala
egípcia, Sokurov trata das diferenças entre a cultura oriental e a ocidental.
Ele se rende aos retratos, tão presentes no Louvre, com closes em alguns dos
quadros, fazendo a seguinte pergunta: “Porque os retratos são tão importantes
na cultura europeia, considerando que são inexistentes na cultura muçulmana?”
Uma obra que nos enche de interesse pelo que ainda não compreendemos da arte e
que nos auxilia a enxergar melhor o que está por trás da grandeza do Louvre,
que começou a ser projetado no final do século XXII e teve suas portas abertas
em 10 de agosto de 1793, poucos anos depois da Revolução Francesa. Para
terminar este texto, deixo o meu leitor com o trecho do ensaio “A Proximidade
de um Mestre”, do saudoso Leon Cakoff, do livro “Alexsandr Sokúrov”
(Mostra/Cosac Naify, 2002), com organização de Álvaro Machado. Neste trecho,
ele se refere à Arca Russa, mas poderia estar se referindo a esta Arca Francesa:
“O diretor fala de política no sentido direto
da palavra, o que é muito valioso para recompor os delírios e matar as charadas
sutilmente construídas nos diálogos sobre os tiranos do século XX que se
converteram em personagens dos seus filmes – Hitler em ‘Moloch’; Lênin em ‘Taurus’;
e um projeto sobre Hiroito (O Sol): ‘Quanto mais infeliz uma pessoa é, mais
poder ela quer’. Divaga sobre a natureza humana e sua resistência permanente
contra a barbárie: ‘Há gente que está pronta para morrer, mas que não está pronta
para resistir e sobreviver, para entrar na arca...’. Aqui começam todas as
metáforas sobre a Arca de Noé que Sokúrov foi transferindo para os sentidos de
sua Arca Russa: ‘Minha arca é um símbolo de sobrevivência, sou um partisan do
entretenimento com o cinema’ (...). E ele nos oferece uma arca cheia de
tesouros e recordações, com mais desafios e armadilhas, num ciclo histórico
perpétuo.”
Para aqueles que se deleitaram com as imagens
e o conteúdo histórico de ‘Arca Russa’, como foi o meu caso, que fui a São
Petersburgo em 2012 para passar 6 horas e meia imerso no Hermitage (lastimando
não ter feito uma segunda e uma terceira visita a um dos museus mais significativos
do mundo), posso dizer que “Francofonia” é filme obrigatório, por ser uma
declaração de amor ao Louvre, à arte e aos homens que ajudaram a salvar suas
obras. Quem visita o Louvre hoje não tem como saber que o museu não teria a
maior parte das suas quase 400 mil obras, não fosse o empenho de Jaujard e a
conivência de Metternich em evitar o saque nazista. Assistam ao filme enquanto
está em cartaz nos cinemas brasileiros. Em Porto Alegre, o filme de Sokurov
está sendo exibido nos cinemas Guion e Espaço Itaú.
FRANCOFONIA
Direção: Aleksandr Sokurov
Elenco: Louis-Do de Lencquesaing, Vincent
Nemeth, Benjamin Utzerath, Johanna Korthals Altes, Jean-Claude Caër y Andrey
Chelpanov
Fotografia: Bruno Delbonnel
Montagem: Hansjörg Weißrich
Música: Murat Kabardokov
Duração: 88 minutos
Ano: 2015
Gênero: Drama / Documentário
Produção: França / Alemanha / Holanda
Distribuição: Imovision
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