A minha relação dos
dez melhores filmes estrangeiros de 2013 tem o naturalismo fílmico e uma
abordagem sem julgamentos da condição de quem ama iguais, tem uma homenagem ao
cinema de Murnau, tem a metaficção, a narrativa sem protagonistas, a vida de dois artistas franceses, uma família amarga e sincera, o amor diante de uma doença terminal,
tem uma Poliana nem tão moça assim e a continuação de uma saga que segue o
tempo normal dos seus personagens, Jesse e Celina, além dos trambiques de um
Portugal pós-Troika ou, como queiram, dos arrochos do Mercado Comum Europeu,
Dez filmes de tirar o fôlego, que renovaram a dramaturgia cinematográfica, que
modificaram a forma ou a mantiveram e foram fundo no conteúdo. Obras para ficar
na memória.
Aí vai a lista dos 10
mais (onze, pois há um empate na nona colocação) do cinema internacional em
2013:
1 - AZUL É A COR MAIS QUENTE
O filme de Abdellatif
Kechiche tem tudo o que um grande filme precisa e muito mais. É realista ou
naturalista, como queiram, conta uma grande história baseada em uma história em
quadrinhos, apresenta o mundo lésbico de forma mais profunda, sem julgar. Na
verdade, o amor lésbico é o amor. A vida de Adèle é uma vida comum, daquelas de
um adolescente que lê A Vida de Marianne, de Marivaux. A história é plausível,
filmada de forma a câmera interferir o menos possível (lembram de Entre os
Muros da Escola, de Laurent Cantet). E o diretor resolveu interferir o menos
possível pois a Clementine, da HQ de Julie Maroh, virou Adèle pois a
protagonista é Adèle para seguir a espontaneidade em relação ao nome da atriz
Adèle Exarchopoulos, sendo que o título original do filme passou a ser La Vie
D´Adèle, A Vida de Adèle e não Azul é a Cor Mais Quente, o título da HQ. A
relação de Adèle com Emma (Léa Seydoux) é espontânea. Adèle fala enquanto
mastiga e se instiga com o cabelo azul da artista plástica, que é maior de
idade. Emma tem o cabelo azul, a relação resolvida com a sexualidade, bem como
a maturidade dos pais com a homossexualidade dela. Na vida de Adèle, nada é tão
simples. Os pais dela pensam que ser artista é um passatempo e não um trabalho.
Adèle é curiosa e vive uma intensa história de amor com Emma, destas que vêm e
vão, que são suscetíveis à traição, o romantismo do século 19 atravessando a
rua do século 21 As três horas de filme
e a cena de sexo de sete minutos só corroboram para todo o naturalismo. O filme
não é longo, as pessoas é que às vezes são curtas para o tempo. Bom, o filme é
sobre o amor, a transcendência, os costumes, a arte e como é encarada nos dias
de hoje uma relação homossexual. Não há julgamento, há só uma bela história,
muito cinema e bastante reflexão sobre o tema a posteriori. Merecidamente o
melhor filme de 2013, prenunciado pela vitória em Cannes e depois pelos nossos
olhos amorosos e condescendentes.
.
2 - TABU
Tabu é primeiramente
uma homenagem ao cinema e a um dos diretores mais expressivos dos primeiros 40
anos da Sétima Arte, o alemão Friedrich Wilhelm Murnau. O diretor Miguel Gomes
cria o seu Tabu, referenciando ao título do filme de Murnau, de 1931 e também
ao nome da protagonista Aurora (Laura Soveral/Ana Moreira), outro filme do
cineasta alemão, o diretor português inicia a trama com um homem que se suicida
ao se jogar aos crocodilos, não sem antes ver refletida a imagem de uma mulher
na água, permanecendo no ar a ideia romântica e épica. Invertendo a lógica do
Tabu, de 1931, a primeira parte é o “Paraíso Perdido”, a Lisboa atual com vidas
quase sem sentido de Pilar (Teresa Madruga), a vizinha Aurora (Laura Soveral) e
a sua empregada africana Santa (Isabel Cardoso), rodado todo em preto e banco. Para
chegar à segunda parte, “Paraíso”, a transição é a morte de Aurora , O
personagem Ventura (Henrique Espírito Santo/Carloto Cotta), que teve um caso
com Aurora nos anos 1960 em Moçambique remonta a história da bela Aurora, uma
mulher de fibra, uma caçadora, que não tinha medo de crocodilos e que trai o
marido (o brasileiro Ivo Müller. O detalhe de toda a narrativa é que a história
é contada por Ventura na atualidade e só ele delineia a trama, deixando os
personagens da época agirem sem fala, com o mexer de bocas, e apenas com os
sons ambientes. Isto cria um efeito maravilhoso, que mixa o cinema mudo com as
histórias de Jacques Tati. Um belo filme, pessimista, lírico, épico e uma aula
de cinema desconstruído desde o contemporâneo até o mais ancestral, o cinema
mudo de Murnau e outros cineastas anteriores.
3 – AMOR
Uma das mais contundentes histórias de amor e dor já
filmadas. O austríaco Michael Haneke, com a sua capacidade de mergulhar no mais
profundo do ser humano, obteve dos seus protagonistas Emmanuele Riva e
Jean-Louis Trintignant o máximo de dramaticidade. A história por si só nos
conduz para os labirintos do amor e da finitude, quando Rose tem dois derrames
consecutivos e fica em estado vegetativo.
Aqui a crítica que fiz logo após assistir ao filme:
Há quase uma década criei um conto chamado Até o Fim, no qual a narrativa era
conduzida por um coveiro que vive a sua vida intensamente até o fim mesmo. Ele
mesmo orquestra o seu enterro. Bom, estou abordando o tema subjetivamente, pois
o filme Amor, de Michael Haneke é um exercício diante da finitude, diante do
amor até o fim. É um exercício minimalista, mas com uma grande carga de
dramaticidade e interpretações exuberantes dos protagonistas que encaram o
casal francês de professores de música aposentados, com idade acima dos 80
anos, Anne e George (Emmanuele Riva e Jean-Louis Trintignant).
Sem querer contar o que se sucede no filme do diretor de Caché e A Fita Branca,
mas encaminhando a condução da narrativa, é importante se dizer que o grande
sucesso que o filme vem fazendo se deve principalmente ao fato de o filme nos
fazer confrontar com um drama que mais cedo ou mais tarde, direta ou
indiretamente, irá atingir todos nós. Após assistir a um concerto de um ex-aluno,
o pianista na vida real Alexandre Tharaud, Anne vai para casa e no dia
posterior tem um derrame. Com o lado direito paralisado, Anne passa a
necessitar de auxílio para a maior parte das atividades cotidianas. Não
querendo falar da síndrome de cinema e lágrimas, mas as privações de Anne e o
empenho amoroso de George acabam nos deixando com o coração partido,
desnorteados, tentando entender o que é o amor diante de um acidente vascular
cerebral ou das doenças degenerativas e da própria morte. Ele resiste. Ele pode
ser maior do que tudo. Mas somos humanos.
Neste lado humano do amor, o papel da filha, representado por Isabelle Huppert,
e do casal de zeladores do prédio, que ajudam com as compras, e também das
enfermeiras fazem o contraponto, de pessoas que não entendem porque Anne não
quer ir para um hospital ou um asilo. É uma mulher culta, professora de música,
lê e ouve música todos os dias. A degradação e a entrega não fazem parte do seu
vocabulário. Haneke sabe disto e nos coloca dentro da perspectiva do apego do
casal e de como eles se relacionam com a doença de Anne e com o mundo externo.
O que George vai fazer com Anne é uma decisão que só ele pode tomar e que só um
filme com tamanho poder de discernimento e grau de realidade pode nos
proporcionar.
Os prêmios recebidos por Amor são mais que merecidos, incluindo a Palma de Ouro
em Cannes 2012 e mais recentemente o César de Melhor Filme, o Oscar francês.
Haneke que já havia mergulhados nas profundezas da alma humana em A Professora
de Piano, Violência Gratuita, Cachê e A Fita Branca é um diretor no qual se
pode confiar, que sempre vai nos apresentar histórias com um grau de drama e de
humanidade acima da média. Filme triste, de lágrimas, mas para que pensemos no
que fazer diante da finitude da vida neste plano terreno.
4 - AS QUATRO VOLTAS
Publico a crítica do filme escrita em maio:
Antes de começar a entabular esta crítica, preciso dar um
aviso, prestar um serviço de utilidade ao público. Se você é daqueles espectadores
que está acostumado com as linguagens convencionais de narrativa
cinematográfica, aquele esquemão básico de roteiro do Syd Field, com
apresentação, confrontação e resolução, dois pontos de virada, anticlímax e
clímax, com ação sustentada pelos diálogos e uma trama bastante visível para
que você possa entender ou desvendar o filme, então nem se dirija ao cinema
para ver o filme com coprodução da Itália, Alemanha e Suíça: "As Quatro
Voltas", vencedor do prêmio Melhor Filme Europeu da Quinzena dos Realizadores
de Festival de Cannes em 2010.
Filme que remete a algumas obras de Jacques Tati pela
ausência de diálogos e a utilização do som direto e também o cinema
contemplativo de Andrey Tarkovskiy, em filmes como "O Sacrifício",
este segundo longa do italiano de Milão, Michelangelo Frammartino (o primeiro é
"Il Dono", cuja tradução seria O Dono, agora ele já rodou o
documentário Alberi), trata dos ciclos de vida, do tempo e da natureza e como o
homem se insere nestes ciclos. O local é uma pequena aldeia com características
medievais nas montanhas da Caulonia, na Calábria, no sul da Itália. Os ciclos
são apresentados exatamente em quatro voltas que envolvem um homem (pastor de
cabras), uma cabra, uma árvore e a fabricação do carvão, pois o sustento da
região é carboneiro e também o carvão serve para aquecer as casas no frio
calabrês. É uma espécie de eterno retorno de Nietzche com as formas de vida e
subsistência da região. As quatro voltas são a humana, a animal, a vegetal e
finalmente a mineral.
A poesia visual e a beleza narrativa de
"As Quatro Voltas" é o que mais incomoda ao espectador que não se
informou sobre o filme antes de entrar na sala. O primeiro quarto de narrativa
da 1h28min do filme acompanha um homem (Giuseppe Fudda) que pastoreia as suas
cabras e está muito doente. O tempo passa e os dias são exatamente iguais, os
sons da pequena vila são dos cachorros, do vento nas árvores, uma voz ao longe,
do balido das cabras e dos sinos de localização que elas carregam. O pastor
acredita que o melhor remédio para a sua doença está na poeira acumulada no
chão da igreja, que ele coleta junto a uma funcionária da igreja e mistura com
água antes de dormir para beber. A poeira provavelmente vem das cinzas do
carvão, o eterno retorno na mesma aldeia.
No dia em que ele perde o pó coletado, bate o
desespero e ele recorre à igreja à noite, mas ninguém atende. Ele dorme
preocupado e não levanta de manhã, quando um acidente faz com que as cabras se
soltem e invadam a casa onde mora (uma cena na melhor linha de "O Anjo
Exterminador", de Luis Buñuel, que era com ovelha numa sala). O ciclo do
pastor está findando e o de uma cabritinha está começando desde o seu parto, o
carinho da mãe até as brincadeiras e o acaso agindo para que ela se perca. No
meio disto tudo, a comunidade segue suas tradições da encenação da Paixão de
Cristo e os carboneiros que aparecem no início do filme são os centuriões
(Bruno Timpano e Nazareno Timpano). Não há diálogos, só vozes distantes e a
câmera contemplando as ações, inclusive o balido desesperado da cabritinha
quando ela se perde e alcança abrigo numa árvore frondosa, um pinheiro. A volta
dela também se finda e o que se vê é uma tela escura e as batidas com pás da
feitura do carvão, um sinal de morte, mas de renascimento para o bem coletivo
da aldeia.
A árvore frondosa enfrenta as quatros
estações, o inverno e a neve, mas não se mantém diante de uma tradição
calabresa de colocar no centro da aldeia um tronco altíssimo, a
"Pita" (a árvore finalizando o seu ciclo) com ramos e balões no seu
topo. Após a festividade que também pode ser associada à religiosidade
(característica intrínseca a qualquer comuna italiana), á arvore vira lenha e
vai alimentar a fabricação do carvão, que vai virar fumaça e irá para o ar da
comunidade, num ciclo sem fim.
A poesia do filme reside em entender estes
ciclos e se utilizar apenas da câmera contemplativa, sem a interferência do
roteiro para apresentar os possíveis ciclos da vida numa comunidade onde os
tempos modernos não chegaram, a vida segue sempre a mesma sina. De alguma forma
é um eterno retorno à italiana (a visão deste outro pintor visual, casualmente
também Michelangelo sobre a teoria de Nietzsche) ou então a doutrina dos ciclos
(descrita por Jorge Luis Borges), como queiram, pois para quem acredita, quando
um ciclo se finda ou uma volta é dada, outra se inicia, em espiral ou em
círculos. Uma obra de exceção, que não é para todos. Público de blockbuster,
mantenha-se distante ou saia nos primeiros 15 minutos, como várias pessoas o
fizeram na sessão em que eu fui.
5 – ÁLBUM DE FAMÍLIA
O filme de John
Wells, baseado na peça de Tracy Letts, sobre a amarga família que vive no
Condado de Osage, em Oklahoma, foi mais uma das grandes surpresas
cinematográficas de fim de ano. Muitas pessoas reclamam do cinema que é
teatral, mas a dramaturgia e o conflito são o quesito mais essencial do cinema.
Não adianta muita forma sem conteúdo. A história da família de Beverly e Violet
Weston, encarnada pelos monstros Sam Shepard (participação curta e essencial) e
Meryl Streep, da qual não temos mais nada a dizer, tamanha a sua entrega para
os papeis. A relação de Violet com as filhas e com a família é conturbada e o
suicídio de Beverly traz todas as verdades à tona e os podres falados em voz
alta à mesa, num embate forte entre Violet e a filha Bárbara, a que mais a
enfrenta e que também é amarga, como todos na família, vivida pela também
grande atriz e agora mais madura cenicamente falando, Julia Roberts. Um grande
filme sobre os podres familiares e como fazer para conviver com eles.
6 - VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA
Cineasta totalmente autoral, o francês Alain
Resnais nos proporcionou pelos menos duas pérolas da ficção poética como
"Hiroshima, Mon Amour" e "O Ano Passado em Marienbad", além
do difícil filme duplo ou espelho como "Smoking/No Smoking" e
do excelente musical "Amores Parisienses". Aos 90 anos e casado com a
atriz Sabine Azéma, Resnais está longe da senilidade e segue o caminho
inventivo que acompanha os cineastas autorais franceses. Em "Vocês Ainda
Não Viram Nada" que estreia nos cinemas neste final de semana, o ponto de
partida é o último desejo de um diretor na hora da sua morte. Baseado no livro
"Eurídice", de Jean Anouilh, este drama dramatúrgico - é assim
redudantemente que o batizo - tem como início o assistente (o ator polonês
Andrzej Seweryn) do diretor e dramaturgo Antoine d´Anthac (Denys Podalydès, da
Comédie Française), ligando para cada um dos atores que já interpretaram a peça
Eurídice, do próprio d´Anthac. Ele liga, diz alô e pergunta se a pessoa é
Sabine Azéma, comunica que lamentavelmente o senhor Antoine d´Anthac faleceu e
que ela é esperada na suntuosa casa dele no alto de uma montanha em Peillon.
Assim também recebem as ligações em telefones celulares ou convencionais, os
atores Pierre Arditi, Mathieu Amalric, Michel Piccoli, Lambert Wilson, Anne
Consigny, Hippolyte Girardot, Jean-Noel Brouté, Anny Duperey, Jean-Chrétien
Sibertin-Blanc e Michel Vuillermoz.
Assim como os mesmos planos cinematográficos repetidos a cada
ligação do assistente do dramaturgo e o consequente atender ao telefone de
perfil, a chegada à mansão em Peillon é feita ao melhor estilo Resnais, com a
câmera no mesmo ponto, centralizando o abrir da porta, com o vento forte lá
fora e a porta se abrindo, com o assistente apresentando a casa a cada um dos
atores, que ali vivem eles mesmo como atores que interpretaram a Eurídice do
dramaturgo falecido. Cada um dos atores destaca o gosto e o colecionismo de
Antoine pelas casas exóticas. Após a chegada de todos e os respectivos
cumprimentos de pessoas que não se viam há tempos, o assistente dispõe todos os
atores defronte a um telão, que é recoberto por um quadro que reproduz a visão
externa da casa onde eles estão. No telão, Antoine d´Anthac enfatiza que
recebeu de um grupo iniciante a Compagnie de La Colombe (Companhia da Pomba,
traduzindo do francês) uma versão em vídeo da montagem de Eurídice e que se
eles estão assistindo à montagem neste momento é porque ele já está morto e
pede que eles aprovem ou não a montagem.
O que acontece a partir daí é a mágica da metalinguagem e da
interação tela/palco/vida. O telão reproduz o drama de Eurídice (baseado na
lenda grega do Orfeu), que está dividida entre o amor de três homens, um deles
é Orfeu, que tem uma relação intensa com a música e que deixa o pai na estação
para fugir com Eurídice para um hotel em Marseille. Os atores como Sabine Azéma/Anne
Consigny e Pierre Arditi/Lambert Wilson, que viveram Eurídice e Orfeu nas
montagens de d´Anthac assistem inicialmente à montagem do grupo iniciante,
balbuciando os textos e depois interagindo com o telão, até trazerem a trama
para a casa em Peillon. Nos três atos da história, a dramaticidade do texto
transita entre a casa e o telão e entramos dentro de uma experiência
metalinguística incomparável. Revivendo os papéis interpretados na tela pelos
jovens atores, os veteranos mexem com o seu passado, com o seu fazer teatral e
também com a própria identidade de atores vivendo eles mesmos interpretando uma
peça que também tem uma correlata no telão. Resnais cria o seu universo teatral
e a partir daí acompanhamos um teatro onde a vida, o palco e a tela perdem suas
fronteiras.
As interpretações de outros gigantes do teatro e
do cinema francês como Michel Piccoli, Hippolyte Girardot, Mathieu Amalric e
Anny Duperey, pontuadas pela trilha densa e precisa de Marc Snow e pela
fotografia que privilegia as mudanças de luz e os interiores dos cenários, dão
ao filme uma intensidade que não precisa ser marcada pelo ritmo veloz, mas sim
pelo metrônomo de uma montagem teatral. A reviravolta existente no final é
impossível de ser contada, pois atrapalharia a surpresa apontada por Resnais,
mas posso adiantar que é dramática, como o próprio Resnais, como o personagem
de Antoine d´Anthac e como o filme requer, pois estamos diante da nata da
atuação na França, cujos prêmios de atuação todos somados chegariam a duas ou
três centenas de troféus. Um filme para se deixar levar, para sonhar, para
interpretar, para ver e rever, para transpor as fronteiras e os limites entre a
vida, o teatro e o cinema. Imperdível como qualquer filme de Alain Resnais.
7 - FRANCES HA
Um belo filme de Noah
Baumbach. Uma Poliana moderna vivida por Greta Gervig. Uma mulher que tem sua
vida pela metade, cujos amores, a amizade e a carreira estão sempre no quase. A identificação é quase que total com aqueles que estão sempre querendo acertar na carreira, no amor e na vida, mas sempre ficam pelo meio do caminho. Bela obra cinematográfica em preto e branco e com a trilha encabeçada por Modern
Love.
8 – ANTES DA MEIA-NOITE
Jesse e Celina estão
de volta, desta vez com mais de 40 anos, com duas filhas passando as férias na
Grécia e discutindo a relação como qualquer casal. Bela trilogia construída por
Richard Linklater, com roteiro dele e dos atores Julie Delpy e Ethan Hawke. Um
grande filme e um grande projeto, que segue o tempo real da idade dos atores e
do que o tempo faz com um casal.
9 – RENOIR / CAMILLE CLAUDEL 1915
Dois belos filmes sobre o universo de dois artistas franceses. O primeiro mostra a relação de Pierre-Auguste Renoir (Michel Bouquet) com uma das suas modelos de nus (Christa Teret) e o despertar do filho Jean Renoir para o cinema. O filme trata das sutilezas do pensamento e da pintura do grande Renoir numa segura câmera de Gilles Bourdos. O segundo aborda os últimos de anos da escultora Camille Claudel (Juliette Binoche) em um sanatório e a esquizofrenia em relação a Rodin e a vontade de sair de lá, externada em cartas e conversa com o irmão Paul Claudel e a aspereza da loucura, filmada em um chiaroscuro atordoante por Bruno Dumont.
10 – AMÉRICA
Aqui uma crítica sobre o filme do português João Nuno Pinto, escrita no início do ano:
A NAU DOS ENCALHADOS
O cinema português está mais prolífico que nunca e sobrevive
além do seu incansável ícone Manoel de Oliveira, de 104 anos. Quando estive em
Portugal entre novembro e dezembro de 2012, eram cerca de 10 lançamentos de
filmes genuinamente portugueses, como "Operação Outono" e "Deste
Lado da Ressurreição ainda inéditos no Brasil e "Aristides de Sousa Mendes
- o Cônsul de Bordéus", este exibido em première na 9ª Seleção de Filmes
Bourbon, realizada pela Panda Filmes, em novembro de 2012. Novamente, a Panda
Filmes nos coloca em contato com produção portuguesa, co-produzida com Espanha,
Brasil e Rússia. "América", dirigido por João Nuno Pinto, é um filme
de náufragos, pessoas sempre à deriva, que vivem de pequenos golpes,
principalmente no que tange ao acolhimento das centenas de imigrantes que
desembarcam na nova América que é Portugal, um caldeirão de culturas e uma das
portas entradas mais tranquilas da Europa rica na atualidade, já que França,
Espanha, Itália e Alemanha apertaram um pouco o cerco aos imigrandes. O diretor
João Nuno Pinto o define como um filme de "encalhados". A obra é
baseada no conto "Criação do Mundo", da autora portuguesa Luísa Costa
Gomes, co-roteirista do filme junto com João Nuno Pinto e Melanie Dimantas.
Com uma poética visual bastante própria e uma trilha sonora
que gira entre o lírico e a tensão, "América" nos coloca na periferia
de uma pequena cidade litorânea portuguesa, com a narrativa seguindo a voz em
off de Liza (Chulpan Khamatova, de "Adeus, Lênin", melhor atriz da
11ª Semana de Cine Iberoamericano de Villaverde, Espanha, uma jovem imigrante
russa, casada com um português, Vítor (Fernando Luís, ator carismático e que
empresta uma grande organicidade ao papel), de quem tem um filho, Mauro (Manuel
Custódia). Vítor é um trambiqueiro, como chamamos aqui no Brasil. A sua sina é
enganar velhinhas e quando muito tirar 200 euros de algo ligado a previdência e
a um dinheiro que está para chegar. Mauro, de uma hora para outra, resolve não
falar e se comunica com olhares e com brincadeiras. Liza cuida da casa e da avó
de Vítor, que se recusa a comer, mas que demonstra um carinho enorme por Liza,
chamada de Popova por Vítor.
A primeira virada do filme se dá quando a
espanhola Fernanda (María Barranco), ex-mulher de Vítor, reaparece propondo um
negócio de falsificação de passaportes para os imigrantes ilegais russos,
ucranianos, angolanos, brasileiros, entre outos. A partir daí, Liza perde o
controle sobre a casa e o local passa a ser ponto de passagem para inúmeros
imigrantes de várias raças e nacionalidades. Todos náufragos ou encalhados à
procura de uma terra realmente firme. Com Fernanda, aparecem dois tipos
especialmente estranhos, o espanhol Tolentino (Fernando Maestre) e o brasileiro
Matias (Cassiano Carneiro, que atuou em filmes e novelas no Brasil como
"Mandacaru"). Os dois dão o tom de humor necessário a um filme de
erros. Enquanto Tolentino é o próprio tragicômico espanhol, parecendo egresso
de um filme de Almodóvar, Matias dá a brasilidade e aquele humor ácido. Uma das
principais piadas do filme é quando eles estão organizando a fila para
encaminhar os passaportes falsificados e Matias pergunta: "Quem é africano?
Então vai para o fim da fila. E quem é brasileiro? Vai para trás dos
africanos". Outra piada que funciona é quando alguém pergunta o nome
daquele artista famoso de Hollywood e alguém responde: "É o Denzel
Washington" e ouve: "Não, é o King Kong".
A trama está cheia de viradas e acompanhamos Liza tentando
fugir daquela realidade de encalhados, sem nunca obter sucesso, enquanto a
situação fica cada vez mais crítica. Todos dependem do artista do grupo, o
velho Melo (o veterano Raul Solnado, que faleceu no período de pós-produção do
filme em agosto de 2009 e a quem a obra é dedicada) e também do cérebro dos
golpes que é Paulo Armando (Dinarte Branco), que tem ideias para golpes
virtuais, mas é um incompreendido. Para piorar, Liza se envolve com um
ortopedista ucraniano Andrei (Mikahil Evlanov) e Vítor tem uma recaída com
Fernanda. O filme ainda nos reserva cenas belíssimas da cidade litorânea (a
locação é na Cova do Vapor, localizada no distrito de Setúbal, próximo de
Lisboa, na junção entre o rio Tejo e o Oceano Atlântico), dos labirintos de
ruelas onde Liza e Vítor moram, a força da chuva no outono/inverno português e
algumas cenas meio Fellinianas, como um barco que encalha no teto da casa que é
o centro da trama. A fotografia foi vencedora do festival Indie Lisboa, em
Portugal. Além disto, a máfia russa também aparece, pois na vida real ela
existe e está disseminada por toda a Europa, após o fim da União Soviética.
Um filme belo, bem-humorado e tenso ao mesmo
tempo, que nos leva a pensar numa tragédia iminente, pois os fios que ligam os
personagens a uma vida normal são muito frágeis. A mão do diretor está sempre
presente, provando que João Nuno Pinto, que havia dirigido somente o curta
"Skype Me" (2008) merece toda a nossa atenção daqui por diante, por mostra
uma trama com tensão constante, belas imagens, bons atores e com uma narrativa
que nunca perde o pique e o foco. Pinto recebeu dois prêmios de Melhor Diretor
pelo filme no 15º Festival Sofia de Cinema Independente 2011, na Bulgária e no
5º Festival Cineport, no mês de setembro de 2012, em João Pessoa (PB).
Uma bela e simbolista
obra sobre as consequências do Mercado Comum Europeu na Europa atual, o revolto
mar financeiro deixa muitos náufragos pelo caminho. .