Ninguém podia reclamar de Edivaldo. Ele trabalhou até o fim. Dos outros. De si mesmo. Era caprichoso com a morte. Dos outros. A profissão de coveiro lhe deu o amor, que não tinha pelos vivos. A cada jazigo, seja túmulo em terra, gaveta ou mausoléu, lá estava ele acariciando o local. Quando um familiar lhe passava a alça dianteira do caixão, sentia um estremecimento. Saudável. Ele era uma espécie de fiscal desta viagem. Acreditava no que fazia. Fez isto durante quarenta e cinco anos. Perto do fim de sua vida, já tinha poucas forças e precisava ser ajudado.
Com a família, não dedicou tanto amor em vida, como quando enterrou sua própria mulher Eva e também dois de seus quatro filhos. Homens. José e Edinaldo. Morreram por volta dos quarenta anos. Nestes três, fez um trabalho especial, pois fez inscrição entalhada em uma madeira que revestia os túmulos. Um do lado do outro. Concessão especial da Prefeitura de Cangoatá. Para o funcionário exemplar. Dois salários mínimos, mais vantagens do tempo, os qüinqüênios, decênios e outros ênios. O irmão Ênio também passou por suas mãos. Nesta morte, fez questão de preparar o corpo junto com o pessoal da funerária, os velhos amigos Geraldo e Marildo.
A vida de Edivaldo foi conviver com o sofrimento dos outros. Era um coveiro amigo. Tinha sempre uma palavra certa. Exata. Para aquele momento de dor. Fé. Paciência. Ele queria assim. Vontade divina. Destino. Todos têm sua hora. Aquilo que parecia clichê, na sua boca era láudano. A memória deste homem era de elefante, como todos dizem. Quando alguém visitava túmulo, lembrava. Claramente. De tudo. Sabia os nomes dos principais familiares. Era comum perguntar: como vai o fulano? ou e a beltrana, melhorou da perna? Zelava por cada um dos túmulos. Eram sua família.
Fora dali, a sua vida era apagada. Em casa, era bastante ausente. Moravam perto. Depois de que dona Eva morreu, foi visto bebendo cachaça. Primeiro os amigos, que contaram para os filhos. Tinha sempre uma garrafa enterrada próximo dos locais onde jaziam homens com problema de alcoolismo mal resolvido.
Sentia-se um pouco culpado pela morte da mulher, pois estava acostumado a assistir as pessoas na morte e não em vida. Demorou muito tempo para assimilar o baque. Definhou um pouco. Um único dia neste tempo todo ficou acamado e não foi trabalhar. Foi na passagem de uma criança de quatro anos assassinada e que por acaso era sua vizinha. Achou cruel demais. Ele que via a morte tão de perto que só tinha bem a falar dela. Mas queria ver vida nas pessoas.
Adorava a movimentação de pessoas em torno do falecido. Gostava de ver quem realmente amava e quem estava ali por estar. Ficava explícito. Muitos ignoravam este fato. Os familiares talvez percebessem. Durante muito tempo, Edivaldo ficou como que lendo as mentes das pessoas. Apesar do terceiro ano primário, percebia o comportamento, as inquietações, os medos, o murmúrio, ou a reza exaltada. Não tinha dúvidas. Tinhas certezas na morte.
Chegou o dia em que ele adoeceu feio. Teve câncer nas mãos. Uma doença estranha que iria lhe tirar a vida. Mas o que era a vida senão o meio de chegar à morte. Ele padeceu, mas disse que trabalharia até o fim.
No dia que as cortinas de sua vida foram fechadas, ele tinha saído do hospital e voltara a trabalhar menos pesadamente. Estava com uma das mãos amputadas e orientava os colegas mais novos. Todos diziam que ele deveria ficar de cama, de repouso. O túmulo encomendado para si, junto ao da mulher, estava fechado. Noite alta, contrariando os filhos vivos João e Jessé (que dormiam) foi ao cemitério e abriu o local dedicado a ele. Dormiu por perto, com muita dor. Foram dois enterros naquele dia. Depois do das quatro da tarde e antes do das cinco, sentiu uma fraqueza. Uma dor no peito. Uma angústia. Tristeza escorrendo pelo corpo. Ligou para casa e chamou os filhos. Deitou próximo à sepultura em que iria trabalhar. Uma advogada recém-formada de vinte e quatro anos. Acidente de carro. A dor o consumindo. A mão restante, a sinistra, e o antebraço direito latejando. Esquecera o remédio em casa. Os colegas mais novos pressentiram.
Os amigos da funerária e os familiares da finada foram se aproximando. Ele agüentando firme. O cortejo veio lento. Ele tentando manter os olhos abertos. As pontadas obrigavam-no a fechá-los. O féretro avançando. Ele vendo o filme da vida. As pessoas cantando Segura na mão de Deus. Ele enxergando aquela luz da qual todos falam. Uns chorando pela morte da jurista. Ele chorando de dor. A aproximação foi lenta. Ele ouvia som de pássaros, o barulho do vento nas folhas, tudo que todos idealizam sobre o outro lado. A mãe da moça falecida lembrando do aniversário de quinze anos da filha. Se culpando também por ter insistido que a filha Marta, a advogada, viesse passar com eles o dia das mães. Ele ouvindo uma música clássica, que não conhecera em vida. A mãe, consciência pesada, pois, se a filha não viajasse toda a madrugada para visitá-la, estaria ainda aqui entre os mortais. Ele tentando abrir os olhos para fazer a sua leitura dos parentes e amigos.
João e Jessé correndo por entre as covas. O cortejo andante. Ele sereno. Jessé tropeçando numa pá deixada perto do túmulo que seria do pai. João constatando que o pai sabia que hoje seria o dia. O pai de Marta chorando e soluçando como uma criança, consolado pelo irmão. O cortejo em prantos. Jessé caído. João perdido. Edivaldo esperando. Vivo. Para trabalhar até o fim
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