Aquela simpática mesa de bar assiste a mais uma reunião dos Bêbados Anônimos, uma versão cool (com duas pedrinhas de gelo) do A.A.. Sentados ao centro, Lucas (eu mesmo); à esquerda, Bruno, e distribuídos nas outras duas cadeiras de metal com propaganda de cerveja, Darci e João, abrimos a sessão dando a pauta daquela que talvez fosse a última. Entediados dos velhos diálogos centrados em futebol, política, carros e mulheres (como esquecê-las!), decidimos abordar a psicologia do relacionamento homem/mulher. Tema fácil, hein?
Quem deu o pontapé inicial foi Bruno, antigo desafeto meu nas reuniões do B.A:
- O importante na relação homem/mulher é o mistério; aquilo que elas esperam que nós façamos, mas que como bons espécimes do gênero masculino, não fazemos, para surpreendê-las, captaram.
- Como assim - retrucou Darci, o mais tapado da turma.
Bruno sustentou:
- Elas esperam o que não faremos nunca, para não cairmos na previsibilidade, tornando-nos objetos do seu tédio.
Sem jeito, Darci tentava argumentar:
- Ah, então é por isto que a minha esposa sabe o que vou fazer, antes que eu diga para ela - colocou, ainda sóbrio.
- Ah! mas não é só ela - tripudiamos.
A conversa até que estava ficando boa, mas ainda faltava algo? Estaria à espera dos meus quinze minutos de fama (odeio Andy Wharol!). Melhor esperar, né. Eu devia ser a atração.
Enquanto isso, Bruno prosseguia seu discurso sectário-machista:
- O importante é a união masculina; que não deixemos escapar coisas que possam ser detectadas pela sensibilidade feminina. Há que ser gerada a opressão deslavada, para que nunca deixemos que elas descubram nossas reais intenções.
Prosseguiu, gritando palavras de ordem:
- Homens unidos, jamais serão previstos. Não é verdade, João?
- Hein! (Ihc). Ahn! É claro. Mas o que você falou mesmo?
- Deixa para lá - absolve-o Bruno.
Um estalo na articulação do meu joelho fez lembrar o momento da minha fala. Pigarreei, alisei o cabelo (com um pente comprado à prestação de um ambulante no CameLondres - o maior ambulódromo do mundo), mordi a língua (minha marca registrada) e tchan, tchan, tchan, fuzilei:
- Pode parar tudo. Quietos, todo mundo quietinho. Gente, as mulheres são a nossa razão de viver, não podemos criar um clima tão divisor, não podemos prescindir daqueles cabelos macios, daqueles peitos fartos, daquelas ancas hipnóticas e dos olhos distantes. Devemos extrair toda e qualquer experiência vivenciada ao lado delas.
- Ah, sai dessa. Traz outra Skol, Moreira. Agora deu para trair a causa da revolução machista, Lucas - metralha Bruno.
Bruno ironizava o meu libelo inspiratório-feminino.
Já recuperado, pigarreei, mordi a língua ... e fulminei Bruno:
- Não adianta desdenhar. Fala das mulheres como se as conhecesse intimamente. Anda lendo revistas especializadas, isto é, para mulheres - comentei, arrancando reprovação e brincadeiras de um coro mais que desafinado: - Huuuuuum, Bruninha.
No calor da discussão, João derramou cerveja sobre Darci, que resmungou coisas sem sentido, de bate-pronto:
- Desgraçado, não olha por onde anda, quer morrer.
- Darci, você não está no trânsito - explico, ajeitando seus óculos que estavam abaixo da linha de visão.
- Ah é verdade. Mas na próxima eu pego o sem-vergonha.
- Como é que é Bruno? - cobro-o .
Ele retrucou:
- Calma, não gosto que chorem sobre a cerveja derramada enquanto falo.
- Não é isso. Você está com medo. Sabe que aquilo que falamos serve como verdade para toda a cidade. É muita responsabilidade para uma mente primária como a sua - julgo-o.
O tempo passava e a conversa ficava quente, apesar do clima que começava a mudar prenunciando chuva. E não tardou a chover, uma chuva fina que intensificou-se, provocando a primeira mudança de cadeiras da história das reuniões do B.A. O vento insistia macio, mas dominante e eis que um raio sangra o céu, iluminando a igreja de Quintal Seco, caindo perto da padaria do seu Chico. O estrondo foi forte e todos levantaram da mesa para ver o que havia acontecido. Todos menos Bruno. O mais articulado dos quatro amigos estava parado. Um olhar estranho indefiniria o que estava por vir.
Ao voltarmos para a mesa, perguntei a ele:
- O que houve, você está se sentindo bem?
- Acho que sim, mas onde foi que nós paramos.
- Interrompemos a conversa, quando você talvez já não pudesse mais sustentá-la, disse-lhe.
- Você falava da superioridade masculina como subterfúgio técnico para o encobrimento das nossas reais intenções - analisa com critério João.
- Que mente a desse cara - enciúma-se Darci.
Bruno ainda estava difícil de definir. Falava agora com calma. Algo naquele raio mudara o rumo da conversa e ele soltava as palavras uma a uma, sôfrego, doce, como querendo redimir-se das infâmias proferidas a esmo, até então:
- Um homem nunca pode ser amigo íntimo duma mulher, sob pena de perder aquilo que mais vale a pena num relacionamento que é a promessa da sedução mútua.
A frase nos fez permanecer silentes por mais de um minuto. Não era ele. Tinha ido longe demais. Era uma frase definitiva. Tomei então um gole de ar, que junto com a cerveja me deu alguns soluços, tentei reagir, mostrar algumas das minhas argumentações mais viris, pois, se considerava as mulheres como musas, era pelo simples prazer de discordar. Eu tinha nisso um requinte estético de gerar dissidência e assim perpetuar a mesa de bar, para não chegar em casa antes da meia-noite e cair frente-a-frente com a trilogia mulher-filhos-problemas.
Com o bar relativamente cheio, alguns que ouviram, ficaram com olhos fixos em Bruno, que por sua vez mantinha a imobilidade, apesar do respirar intenso.
Desde esse 29 de fevereiro de 1980, a frase foi lembrada a cada gole de cerveja dos dez anos que se passaram em todos os bares do município hoje com 105 mil habitantes, localizado numa região próspera do interior do estado de Matão do Sul, em que o comércio e o turismo direcionado às estâncias de águas oriundas de estalagtites, com grutas quase impenetráveis, eram as fontes econômicas de onde os cidadãos quintalienses bebiam até aquele momento, pois Bruno dilatou um pouco a veia turística de Quintal Seco.
Aos que vêm a cidade é contada a história de que, minutos depois da Frase, bem que tentamos trazê-lo de volta às coisas reais, mas Bruno rompia com o seu destino. Contam às romeiras - seu público é exclusivamente feminino - que João, Darci e eu, pegamos nossos casacos com delicadeza e nos dirigimos para nossas casas, numa despedida com um cumprimento pesado de mãos, quase despidos de sensações, anestesiados. Tentamos ainda num átimo de tempo a explicação:
- Devem ser essas coisas de ano bissexto, época de alguns fenômenos sobrenaturais, sobrevôo de OVNIs, talvez estejamos num epicentro da Era de Aquarius. Pode ser qualquer coisa.
Os que viram, contaram e também ganharam muito dinheiro com seus depoimentos. Relataram que Bruno ficou ali até o amanhecer. Lembraram daquela mesa, aquele olhar distante a admirar a noite estrelada. Alguns ouviram frases já impronunciáveis num idioma que, segundo um amigo filólogo, aproximaria-se do hindu. Perólas que instigaram o folclore da região:
Das frases ouvidas em português, esta permanece no jazigo que não guarda o seu corpo, mas sim sua transmutação:
- A mulher é a projeção da essência do homem no seio da terra. Ela advém do trabalho, do sofrimento, das raízes, do eterno; daquilo que nasce e morre para adubar aquilo que nascerá de novo. Precisamos cingir a fronte para dirigir a palavra a tão respeitável ser.
- Haverá também um dia sobre a Terra em que Deus curvará os Seus olhos para a humanidade, apontando um de seus erros: o de não ter criado o homem da costela de Eva, além de reconhecer o justo acerto de ter lhe dado a inteligência, a sensibilidade e a beleza eterna, pois tornou-a absoluta, mais próxima da Sua imagem e semelhança.
Contam os que viram, que depois do nascer do sol, Bruno não foi mais visto. Sabem bem pouco se ele desencarnou, como dizem vulgarmente os espíritas. É considerado santo e sua mulher casou de novo, tendo que sair da cidade por pressão das adoradoras. Quanto a nós, continuamos as reuniões, mas mudamos o nome em respeito ao quase beato, segundo a última notícia que procede do Vaticano. Mudamos também de bebida, a vida está mais dura. Os Cachaceiros Anônimos não têm tanto enlevo cultural nas discussões, a não ser quando falamos em histórias policiais, nosso tema predileto e predominante. O grupo agora é maior. Tem oito integrantes, mas ainda damos generosos golinhos para o santo. Falar sobre a importância das mulheres, nem sonhamos. O beato poderia se zangar e sabe como é, não se deve brincar com coisa divina.
Um comentário:
Oi Gonzaga!! Passei pra dar uma olhada no teu blog. Bjuss
Dani Farias
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