terça-feira, junho 13, 2006

OS CABELOS NÃO PARAM DE CRESCER





Mais do que impaciente, Zoraide acordou com vontade de não ser cabeleireira naquele dia. Com um cabelo enroscado na boca, a tentar escovar o sono junto com os dentes, a magra mulher não pensou em nada mais que um cruzeiro pelas ilhas da América Central: Barbados, Belize e Jamaica, um reggae a limpar o espírito de pagode que plugava a sua vida. O café amargo, açúcar engorda, adoçando como podia a sua tediosa e acomodada vida. Nas unhas descascadas, a desesperança. O beijo na filha, Joana, de três anos, antes de largá-la na marejante creche ao lado dos coleguinhas e seus pecados capitais, herdados dos pais. Oito horas da manhã e o salão vai ser aberto ... até que a luz falta e som do secador podendo ser substituído pelo frech, frech, frech da toalha nos cabelos úmidos e desacomodados de um freguês qualquer, que poderia estar lhe servindo um dry martini no transatlântico, que corria paralelo com Bob Marley e os cubanos Ibrahim Ferrer e Omar Portuondo, cantando Quiças e No Woman no Cry. Mas a manhã é uma madrasta malvada, insistindo em trabalho sem descanso. A luz de volta, os sons se multiplicando, apesar do rádio com som ambiente aplacar um pouco a fúria das vozes, predominantemente femininas, o salão agora estava cheio e o meio-dia com sua fome voraz nem havia chegado.
Como era segundo andar, todas as fofocas vinham acompanhadas de vista para o centro, como para que confirmar que aquela pessoa citada em sua desgraça, traição ou impotência estaria passando pelo local naquele instante. Um assalto pequeno, uma punga sem importância, foi registrada. Quadro rotineiros pintados pelo acrílico do vidro da janela sem persianas. Ninguém escapa incólume do cotidiano. Se tudo aquilo era verdade ou sonho, poucos sabiam. Zoraide, sonhadora, nem pensava em vomitar no balanço do alto-mar, com um empresário peruano no seu encalço convidando-a para dançar mambo pulando sobre o reflexo da lua que fazia da proa uma pompa. O marinheiro limpando o salão de festas do navio. Ela, na real novamente, limpando os cabelos, aqueles que nunca param de crescer, mesmo nos defuntos. Zoraide tinha morrido para a vida, mas estava faceira no sonho acordado. O cruzeiro chegou à primeira parada, ela estava ancorada em seu marido, ardente de sexo, depois de um dia de trabalho cortando cabelos, fazendo massagem capilar e tratamento para calvície. Os cabelos caem como as folhas do calendário de santinhos. No sono, o sonho sobre águas. A lua forrando o mar de brilho, o convés, convenhamos, onírico, dono de todo o seu ser e o despertar em outras paragens. O marido, acudindo, fazendo respiração boca-a-boca. Zoraide só tinha 40 anos, não podia deixá-lo só nesta fase da vida. Os pára-médicos, toda a parafernália, um enterro digno. Não era mais os cabelos dos outros que incomodavam neste momento, neste cruzeiro para outros mares já navegados por Dante, eram os seus cabelos e unhas, que não paravam de crescer. Iria no cabeleireiro e, de quebra, procuraria uma manicure no lugar onde estava. Morrer dormindo tem suas compensações.

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