“...quero dizer outra coisa, quase inacessível: que a ‘alma’ (o meu eu-não-unhas) é a alma de um corpo que não existe. A alma talvez tenha empurrado o homem para além da sua evolução corporal, mas está cansada de empurrar e, agora, segue sozinha para a frente. Apenas dá dois passos e a alma se quebra, ai, porque o seu verdadeiro corpo não existe e a deixa cair, plaf. A infeliz volta para casa, etc., mas isto não é o que eu enfim.’’
JULIO CORTÁZAR, O Jogo da Amarelinha
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DEPOIS DO FIM, HÁ A DÚVIDA
Depois que as histórias de amor acabam é que os envolvidos passam a perceber a validade de cada detalhe, a importância de cada palavra não-dita, de cada angústia emudecida pela dúvida do desagrado, do inoportuno ante as dificuldades de se manter uma história a dois. O par é sempre penoso de se formar e facílimo de se destruir. Quem não tiver sofrido uma história de amor, que atire a primeira pedra e quebre este espelho narrealtivo amoroso em milhares de cacos. O lodo da discórdia, esta comandante tirana, apartando um casal para cantos opostos do ringue. O gongo soando em cada grito ou gesto brusco. Poucos podem entender sem viver uma briga de e por amor. E quem já viveu, sabe do que estou falando. Após o fim decretado ou o finalmente realizado, apenas o silêncio é o cozinheiro mexendo levemente na panela de ferro esperando aquela fervura toda se dissipar e o resultado ser um caldo pessoal de solidão e de consolo nos amigos e parentes. Cada um consigo e só sós conseguem. As palavras durante o embate ficam desconfortáveis na balança do pensamento, preferem se espatifar no ouvido alheio, numa erupção dedicada aos pontos fracos do outro.
Olivares e Vera, o que vocês fizeram com a vida de vocês? Poderiam me dizer. Sou aquele narrador insistente, que me envolvo com a história a ponto de estar umedecendo os teclados deste computador, ao chorar por saber de tudo o que se passou com esta dupla, sensibilizado porque na minha vitrola há um Kitaro insistente. Gostaria de contar a bela estória de amor jamais vista (clichezão, hein!). Temo que não será nada disso, mas não se iludam. Qualquer história humana é bela. Vou tentar convencer-vos disso. Não custa tentar. Podia estar numa poltrona estofada, comendo uma pipoca, amendoim, pizza, chocolate ou torrada, vendo um DVD, mas aceitei este desafio. Venham que voz conduzirei:
Olivares acorda só, com ondas caudalosas lhe irrigando as panturrilhas na praia de Garopaba, em Santa Catarina. A madrugada está em seu meio. A lua é luxo de luz na arena da orla. As suas mãos são dois escorpiões à procurar de um outro corpo que ali deveria estar. A sombra das mãos remetendo à imagem de uma pomba. Vera voara? Há poucas horas estavam em um luau particular. A marca daquele corpo na areia fofa era a única presença agora. Levantou-se de pronto. Sentiu-se tonto. Em pé, esfregou os olhos com força e nada à vista. Audiu um grito. Mesmo cambaleante, correu até o local do brado e viu um homem de cabelos grisalhos com um rabo de cavalo mediano, camisa floreada para fora da cintura e calça branca tentar estuprar uma mulher. Primeiro alívio: não era Vera. Juntou a força com a coragem etilizada e gritou muito, dizendo que iria matar o desgraçado, que fugiu. Luzes às casas. Curiosidade. Olivares correu na direção da mulher, alertando que veio ajudá-la, antes que ela voltasse a exalar medo. Olivares andante, o grisalho em fuga e a mulher em schizo e logo em allegreto. Perguntou se ela estava bem.
- Sim, não se pode confiar em mais ninguém nesse mundo. Nós ficamos juntos esta noite e bebemos umas caipirinhas, mas ele insistiu em transar comigo e começou a ficar pegajoso.
- O que são caipirinhas? – perguntou Olivares, que era português de Coimbra até os ossos, com infindáveis dúvidas vocabulares na transposição de Oceano Atlântico.
- São as bebidas em que misturamos cachaça com limão e açúcar, juntando tudo com uma colher de pau ou pilão.
- Ora essa! Parece-me interessante.
- Pode ter certeza.
- Não me fiz apresentar. Sou Olivares. Sou de Portugal, deves ter “prcebido pelo sutaque” .
- Meu nome é Catharina, com mesmo th que na língua inglesa provoca aquele chiado de língua incisiva entre os dentes, Caffferina – disse para aguçá-lo - Que raro. Estamos cheios de turistas aqui em Santa Catarina, mas portugueses não são tão comuns. Temos forte influência açoriana aqui neste Estado – complementou.
- Queres que eu te leve até algum lugar? Ele não te machucou? – emendava questões.
- Não, tudo bem. Meu carro está aqui perto. Foi só o susto.
Os interlocutores recentes foram caminhando juntos, descompassados, e chegaram até o carro da rapariga. Ela pegou a chave na bolsa, desarmou o alarme e antes de entrar no carro fez menção de despedir de Olivares, agradecer por sua bravura e gesto de segurança. Porém, ele alheou-se ao ver a marca funda de pneus na areia, onde estava estacionado há pouquinho – na sua noção agora distorcida de tempo e espaço - o carro que locaram em Porto Alegre há duas semanas. O Ford Ka já fôra. Com ele viajavam também os sonhos da vida em par, daquela que seria uma noite ímpar, 1, 2, 3 e já, como na aposta de criança.
A mulher salva não foi seu alvo. Sequer reparou nos cabelos curtos de Catharina, cortados rente. A nuca à mostra com uma tatuagem de São Jorge estilizado. Linda, pelo menos para este narrador que vos fala. O corpo, uma taça de champanhe transbordante. Olivares ao seu lado, desolado.
- Bom, acho que vou ficando por aqui, o meu carro está mais adiante – inventou desculpa.
- Que é isso, eu te levo até lá. Se não te importares. Apesar do choque, estou bem. Você é um homem diferente.
- Como? – ele pediu para que ela repetisse, se amparando na incompreensão entre língua mãe e filha, a ganhar tempo e pensar no que realmente faria nos próximos infinitos minutos. Tinha que chegar rápido à pousada em que estavam hospedados.
Aceitou a carona. Era madrugada de quinta para sexta-feira, naquela semana em que poucos trabalham no Brasil, situada entre o Natal e o Ano Novo, no final do ano de 1999. Era o término de milênio, o de mentirinha, quando os calendários do turismo transpassaram o da razão, que tudo se passara.
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