quarta-feira, junho 28, 2006

A anos 80, por ora

Tudo parecia coletivo naquela época. Nada era individual. Preferíamos o bando, as ruas, a liberdade de ir e vir que ainda não estava muito bem assegurada naquele artigo 5 da nossa atual Constituição, promulgada em 1988. Eram os anos 80. A liberdade chegava com a Anistia, com o primeiro governo civil, o presidente Tancredo Neves, mesmo que eleito por um colégio eleitoral e representante da velhacaria de Centro que apoiou o regime militar. Ele não pôde assumir por uma doença em circunstância até hoje mal-explicadas. Mas nestas cidades do Rio Grande do Sul, o que os adolescentes queriam era o coletivo. A possibilidade de pertencer a turmas cada vez mais enormes que iam junto nos shows de rock e demoravam mais de dois minutos para todos subirem nos ônibus que os levavam de uma cidade a outra, de São Leonardo até Nova Frankfurt. Gente do bem, que cantava, brincava com o cobrador, mas que gostava de algazarra, uma que outra pichação, um não-saber-o-que-fazer com esta tal liberdade, como nos anos 90, uma banda de pagode cantou e descontou um pouco tudo aquilo que a juventude hoje com mais de 30 e perto dos 40, tentou construir. Era época dos Eles e dos Engenheiros no Rio Grande, do Camisa na Bahia, do Barão no Rio, do Legião, Paralamas e Capital em Brasília. Boa parte se drogava, mas não era este o exemplo que copiávamos e sim a atitude libertária, de amanhecer fora de casa, de beber um pouco além da conta, sabendo que alguém da horda iria vestir o traje solidário e ser responsável pelo outro, ouvindo as frases repetidas que todo o bêbado tem pronto no Livro das Idiotices, escrito desde sempre.
(continua...)

terça-feira, junho 13, 2006

OS CABELOS NÃO PARAM DE CRESCER





Mais do que impaciente, Zoraide acordou com vontade de não ser cabeleireira naquele dia. Com um cabelo enroscado na boca, a tentar escovar o sono junto com os dentes, a magra mulher não pensou em nada mais que um cruzeiro pelas ilhas da América Central: Barbados, Belize e Jamaica, um reggae a limpar o espírito de pagode que plugava a sua vida. O café amargo, açúcar engorda, adoçando como podia a sua tediosa e acomodada vida. Nas unhas descascadas, a desesperança. O beijo na filha, Joana, de três anos, antes de largá-la na marejante creche ao lado dos coleguinhas e seus pecados capitais, herdados dos pais. Oito horas da manhã e o salão vai ser aberto ... até que a luz falta e som do secador podendo ser substituído pelo frech, frech, frech da toalha nos cabelos úmidos e desacomodados de um freguês qualquer, que poderia estar lhe servindo um dry martini no transatlântico, que corria paralelo com Bob Marley e os cubanos Ibrahim Ferrer e Omar Portuondo, cantando Quiças e No Woman no Cry. Mas a manhã é uma madrasta malvada, insistindo em trabalho sem descanso. A luz de volta, os sons se multiplicando, apesar do rádio com som ambiente aplacar um pouco a fúria das vozes, predominantemente femininas, o salão agora estava cheio e o meio-dia com sua fome voraz nem havia chegado.
Como era segundo andar, todas as fofocas vinham acompanhadas de vista para o centro, como para que confirmar que aquela pessoa citada em sua desgraça, traição ou impotência estaria passando pelo local naquele instante. Um assalto pequeno, uma punga sem importância, foi registrada. Quadro rotineiros pintados pelo acrílico do vidro da janela sem persianas. Ninguém escapa incólume do cotidiano. Se tudo aquilo era verdade ou sonho, poucos sabiam. Zoraide, sonhadora, nem pensava em vomitar no balanço do alto-mar, com um empresário peruano no seu encalço convidando-a para dançar mambo pulando sobre o reflexo da lua que fazia da proa uma pompa. O marinheiro limpando o salão de festas do navio. Ela, na real novamente, limpando os cabelos, aqueles que nunca param de crescer, mesmo nos defuntos. Zoraide tinha morrido para a vida, mas estava faceira no sonho acordado. O cruzeiro chegou à primeira parada, ela estava ancorada em seu marido, ardente de sexo, depois de um dia de trabalho cortando cabelos, fazendo massagem capilar e tratamento para calvície. Os cabelos caem como as folhas do calendário de santinhos. No sono, o sonho sobre águas. A lua forrando o mar de brilho, o convés, convenhamos, onírico, dono de todo o seu ser e o despertar em outras paragens. O marido, acudindo, fazendo respiração boca-a-boca. Zoraide só tinha 40 anos, não podia deixá-lo só nesta fase da vida. Os pára-médicos, toda a parafernália, um enterro digno. Não era mais os cabelos dos outros que incomodavam neste momento, neste cruzeiro para outros mares já navegados por Dante, eram os seus cabelos e unhas, que não paravam de crescer. Iria no cabeleireiro e, de quebra, procuraria uma manicure no lugar onde estava. Morrer dormindo tem suas compensações.

quarta-feira, junho 07, 2006

Um pouquinho para o santo

Aquela simpática mesa de bar assiste a mais uma reunião dos Bêbados Anônimos, uma versão cool (com duas pedrinhas de gelo) do A.A.. Sentados ao centro, Lucas (eu mesmo); à esquerda, Bruno, e distribuídos nas outras duas cadeiras de metal com propaganda de cerveja, Darci e João, abrimos a sessão dando a pauta daquela que talvez fosse a última. Entediados dos velhos diálogos centrados em futebol, política, carros e mulheres (como esquecê-las!), decidimos abordar a psicologia do relacionamento homem/mulher. Tema fácil, hein?
Quem deu o pontapé inicial foi Bruno, antigo desafeto meu nas reuniões do B.A:
- O importante na relação homem/mulher é o mistério; aquilo que elas esperam que nós façamos, mas que como bons espécimes do gênero masculino, não fazemos, para surpreendê-las, captaram.
- Como assim - retrucou Darci, o mais tapado da turma.
Bruno sustentou:
- Elas esperam o que não faremos nunca, para não cairmos na previsibilidade, tornando-nos objetos do seu tédio.
Sem jeito, Darci tentava argumentar:
- Ah, então é por isto que a minha esposa sabe o que vou fazer, antes que eu diga para ela - colocou, ainda sóbrio.
- Ah! mas não é só ela - tripudiamos.
A conversa até que estava ficando boa, mas ainda faltava algo? Estaria à espera dos meus quinze minutos de fama (odeio Andy Wharol!). Melhor esperar, né. Eu devia ser a atração.
Enquanto isso, Bruno prosseguia seu discurso sectário-machista:
- O importante é a união masculina; que não deixemos escapar coisas que possam ser detectadas pela sensibilidade feminina. Há que ser gerada a opressão deslavada, para que nunca deixemos que elas descubram nossas reais intenções.
Prosseguiu, gritando palavras de ordem:
- Homens unidos, jamais serão previstos. Não é verdade, João?
- Hein! (Ihc). Ahn! É claro. Mas o que você falou mesmo?
- Deixa para lá - absolve-o Bruno.
Um estalo na articulação do meu joelho fez lembrar o momento da minha fala. Pigarreei, alisei o cabelo (com um pente comprado à prestação de um ambulante no CameLondres - o maior ambulódromo do mundo), mordi a língua (minha marca registrada) e tchan, tchan, tchan, fuzilei:
- Pode parar tudo. Quietos, todo mundo quietinho. Gente, as mulheres são a nossa razão de viver, não podemos criar um clima tão divisor, não podemos prescindir daqueles cabelos macios, daqueles peitos fartos, daquelas ancas hipnóticas e dos olhos distantes. Devemos extrair toda e qualquer experiência vivenciada ao lado delas.
- Ah, sai dessa. Traz outra Skol, Moreira. Agora deu para trair a causa da revolução machista, Lucas - metralha Bruno.
Bruno ironizava o meu libelo inspiratório-feminino.
Já recuperado, pigarreei, mordi a língua ... e fulminei Bruno:
- Não adianta desdenhar. Fala das mulheres como se as conhecesse intimamente. Anda lendo revistas especializadas, isto é, para mulheres - comentei, arrancando reprovação e brincadeiras de um coro mais que desafinado: - Huuuuuum, Bruninha.
No calor da discussão, João derramou cerveja sobre Darci, que resmungou coisas sem sentido, de bate-pronto:
- Desgraçado, não olha por onde anda, quer morrer.
- Darci, você não está no trânsito - explico, ajeitando seus óculos que estavam abaixo da linha de visão.
- Ah é verdade. Mas na próxima eu pego o sem-vergonha.
- Como é que é Bruno? - cobro-o .
Ele retrucou:
- Calma, não gosto que chorem sobre a cerveja derramada enquanto falo.
- Não é isso. Você está com medo. Sabe que aquilo que falamos serve como verdade para toda a cidade. É muita responsabilidade para uma mente primária como a sua - julgo-o.
O tempo passava e a conversa ficava quente, apesar do clima que começava a mudar prenunciando chuva. E não tardou a chover, uma chuva fina que intensificou-se, provocando a primeira mudança de cadeiras da história das reuniões do B.A. O vento insistia macio, mas dominante e eis que um raio sangra o céu, iluminando a igreja de Quintal Seco, caindo perto da padaria do seu Chico. O estrondo foi forte e todos levantaram da mesa para ver o que havia acontecido. Todos menos Bruno. O mais articulado dos quatro amigos estava parado. Um olhar estranho indefiniria o que estava por vir.
Ao voltarmos para a mesa, perguntei a ele:
- O que houve, você está se sentindo bem?
- Acho que sim, mas onde foi que nós paramos.
- Interrompemos a conversa, quando você talvez já não pudesse mais sustentá-la, disse-lhe.
- Você falava da superioridade masculina como subterfúgio técnico para o encobrimento das nossas reais intenções - analisa com critério João.
- Que mente a desse cara - enciúma-se Darci.
Bruno ainda estava difícil de definir. Falava agora com calma. Algo naquele raio mudara o rumo da conversa e ele soltava as palavras uma a uma, sôfrego, doce, como querendo redimir-se das infâmias proferidas a esmo, até então:
- Um homem nunca pode ser amigo íntimo duma mulher, sob pena de perder aquilo que mais vale a pena num relacionamento que é a promessa da sedução mútua.
A frase nos fez permanecer silentes por mais de um minuto. Não era ele. Tinha ido longe demais. Era uma frase definitiva. Tomei então um gole de ar, que junto com a cerveja me deu alguns soluços, tentei reagir, mostrar algumas das minhas argumentações mais viris, pois, se considerava as mulheres como musas, era pelo simples prazer de discordar. Eu tinha nisso um requinte estético de gerar dissidência e assim perpetuar a mesa de bar, para não chegar em casa antes da meia-noite e cair frente-a-frente com a trilogia mulher-filhos-problemas.
Com o bar relativamente cheio, alguns que ouviram, ficaram com olhos fixos em Bruno, que por sua vez mantinha a imobilidade, apesar do respirar intenso.
Desde esse 29 de fevereiro de 1980, a frase foi lembrada a cada gole de cerveja dos dez anos que se passaram em todos os bares do município hoje com 105 mil habitantes, localizado numa região próspera do interior do estado de Matão do Sul, em que o comércio e o turismo direcionado às estâncias de águas oriundas de estalagtites, com grutas quase impenetráveis, eram as fontes econômicas de onde os cidadãos quintalienses bebiam até aquele momento, pois Bruno dilatou um pouco a veia turística de Quintal Seco.
Aos que vêm a cidade é contada a história de que, minutos depois da Frase, bem que tentamos trazê-lo de volta às coisas reais, mas Bruno rompia com o seu destino. Contam às romeiras - seu público é exclusivamente feminino - que João, Darci e eu, pegamos nossos casacos com delicadeza e nos dirigimos para nossas casas, numa despedida com um cumprimento pesado de mãos, quase despidos de sensações, anestesiados. Tentamos ainda num átimo de tempo a explicação:
- Devem ser essas coisas de ano bissexto, época de alguns fenômenos sobrenaturais, sobrevôo de OVNIs, talvez estejamos num epicentro da Era de Aquarius. Pode ser qualquer coisa.
Os que viram, contaram e também ganharam muito dinheiro com seus depoimentos. Relataram que Bruno ficou ali até o amanhecer. Lembraram daquela mesa, aquele olhar distante a admirar a noite estrelada. Alguns ouviram frases já impronunciáveis num idioma que, segundo um amigo filólogo, aproximaria-se do hindu. Perólas que instigaram o folclore da região:
Das frases ouvidas em português, esta permanece no jazigo que não guarda o seu corpo, mas sim sua transmutação:
- A mulher é a projeção da essência do homem no seio da terra. Ela advém do trabalho, do sofrimento, das raízes, do eterno; daquilo que nasce e morre para adubar aquilo que nascerá de novo. Precisamos cingir a fronte para dirigir a palavra a tão respeitável ser.
- Haverá também um dia sobre a Terra em que Deus curvará os Seus olhos para a humanidade, apontando um de seus erros: o de não ter criado o homem da costela de Eva, além de reconhecer o justo acerto de ter lhe dado a inteligência, a sensibilidade e a beleza eterna, pois tornou-a absoluta, mais próxima da Sua imagem e semelhança.
Contam os que viram, que depois do nascer do sol, Bruno não foi mais visto. Sabem bem pouco se ele desencarnou, como dizem vulgarmente os espíritas. É considerado santo e sua mulher casou de novo, tendo que sair da cidade por pressão das adoradoras. Quanto a nós, continuamos as reuniões, mas mudamos o nome em respeito ao quase beato, segundo a última notícia que procede do Vaticano. Mudamos também de bebida, a vida está mais dura. Os Cachaceiros Anônimos não têm tanto enlevo cultural nas discussões, a não ser quando falamos em histórias policiais, nosso tema predileto e predominante. O grupo agora é maior. Tem oito integrantes, mas ainda damos generosos golinhos para o santo. Falar sobre a importância das mulheres, nem sonhamos. O beato poderia se zangar e sabe como é, não se deve brincar com coisa divina.

terça-feira, junho 06, 2006

Até o fim

Ninguém podia reclamar de Edivaldo. Ele trabalhou até o fim. Dos outros. De si mesmo. Era caprichoso com a morte. Dos outros. A profissão de coveiro lhe deu o amor, que não tinha pelos vivos. A cada jazigo, seja túmulo em terra, gaveta ou mausoléu, lá estava ele acariciando o local. Quando um familiar lhe passava a alça dianteira do caixão, sentia um estremecimento. Saudável. Ele era uma espécie de fiscal desta viagem. Acreditava no que fazia. Fez isto durante quarenta e cinco anos. Perto do fim de sua vida, já tinha poucas forças e precisava ser ajudado.
Com a família, não dedicou tanto amor em vida, como quando enterrou sua própria mulher Eva e também dois de seus quatro filhos. Homens. José e Edinaldo. Morreram por volta dos quarenta anos. Nestes três, fez um trabalho especial, pois fez inscrição entalhada em uma madeira que revestia os túmulos. Um do lado do outro. Concessão especial da Prefeitura de Cangoatá. Para o funcionário exemplar. Dois salários mínimos, mais vantagens do tempo, os qüinqüênios, decênios e outros ênios. O irmão Ênio também passou por suas mãos. Nesta morte, fez questão de preparar o corpo junto com o pessoal da funerária, os velhos amigos Geraldo e Marildo.
A vida de Edivaldo foi conviver com o sofrimento dos outros. Era um coveiro amigo. Tinha sempre uma palavra certa. Exata. Para aquele momento de dor. Fé. Paciência. Ele queria assim. Vontade divina. Destino. Todos têm sua hora. Aquilo que parecia clichê, na sua boca era láudano. A memória deste homem era de elefante, como todos dizem. Quando alguém visitava túmulo, lembrava. Claramente. De tudo. Sabia os nomes dos principais familiares. Era comum perguntar: como vai o fulano? ou e a beltrana, melhorou da perna? Zelava por cada um dos túmulos. Eram sua família.
Fora dali, a sua vida era apagada. Em casa, era bastante ausente. Moravam perto. Depois de que dona Eva morreu, foi visto bebendo cachaça. Primeiro os amigos, que contaram para os filhos. Tinha sempre uma garrafa enterrada próximo dos locais onde jaziam homens com problema de alcoolismo mal resolvido.
Sentia-se um pouco culpado pela morte da mulher, pois estava acostumado a assistir as pessoas na morte e não em vida. Demorou muito tempo para assimilar o baque. Definhou um pouco. Um único dia neste tempo todo ficou acamado e não foi trabalhar. Foi na passagem de uma criança de quatro anos assassinada e que por acaso era sua vizinha. Achou cruel demais. Ele que via a morte tão de perto que só tinha bem a falar dela. Mas queria ver vida nas pessoas.
Adorava a movimentação de pessoas em torno do falecido. Gostava de ver quem realmente amava e quem estava ali por estar. Ficava explícito. Muitos ignoravam este fato. Os familiares talvez percebessem. Durante muito tempo, Edivaldo ficou como que lendo as mentes das pessoas. Apesar do terceiro ano primário, percebia o comportamento, as inquietações, os medos, o murmúrio, ou a reza exaltada. Não tinha dúvidas. Tinhas certezas na morte.
Chegou o dia em que ele adoeceu feio. Teve câncer nas mãos. Uma doença estranha que iria lhe tirar a vida. Mas o que era a vida senão o meio de chegar à morte. Ele padeceu, mas disse que trabalharia até o fim.
No dia que as cortinas de sua vida foram fechadas, ele tinha saído do hospital e voltara a trabalhar menos pesadamente. Estava com uma das mãos amputadas e orientava os colegas mais novos. Todos diziam que ele deveria ficar de cama, de repouso. O túmulo encomendado para si, junto ao da mulher, estava fechado. Noite alta, contrariando os filhos vivos João e Jessé (que dormiam) foi ao cemitério e abriu o local dedicado a ele. Dormiu por perto, com muita dor. Foram dois enterros naquele dia. Depois do das quatro da tarde e antes do das cinco, sentiu uma fraqueza. Uma dor no peito. Uma angústia. Tristeza escorrendo pelo corpo. Ligou para casa e chamou os filhos. Deitou próximo à sepultura em que iria trabalhar. Uma advogada recém-formada de vinte e quatro anos. Acidente de carro. A dor o consumindo. A mão restante, a sinistra, e o antebraço direito latejando. Esquecera o remédio em casa. Os colegas mais novos pressentiram.
Os amigos da funerária e os familiares da finada foram se aproximando. Ele agüentando firme. O cortejo veio lento. Ele tentando manter os olhos abertos. As pontadas obrigavam-no a fechá-los. O féretro avançando. Ele vendo o filme da vida. As pessoas cantando Segura na mão de Deus. Ele enxergando aquela luz da qual todos falam. Uns chorando pela morte da jurista. Ele chorando de dor. A aproximação foi lenta. Ele ouvia som de pássaros, o barulho do vento nas folhas, tudo que todos idealizam sobre o outro lado. A mãe da moça falecida lembrando do aniversário de quinze anos da filha. Se culpando também por ter insistido que a filha Marta, a advogada, viesse passar com eles o dia das mães. Ele ouvindo uma música clássica, que não conhecera em vida. A mãe, consciência pesada, pois, se a filha não viajasse toda a madrugada para visitá-la, estaria ainda aqui entre os mortais. Ele tentando abrir os olhos para fazer a sua leitura dos parentes e amigos.
João e Jessé correndo por entre as covas. O cortejo andante. Ele sereno. Jessé tropeçando numa pá deixada perto do túmulo que seria do pai. João constatando que o pai sabia que hoje seria o dia. O pai de Marta chorando e soluçando como uma criança, consolado pelo irmão. O cortejo em prantos. Jessé caído. João perdido. Edivaldo esperando. Vivo. Para trabalhar até o fim

segunda-feira, junho 05, 2006

Poema sem freio

Meu poema é sem freio
ignora o tempo, sábio conselheiro
ou o sono, capricho dos calmos

Só escuta o silêncio
das ruas virgens da página
sob uma primavera de idéias

Status, para quê?


Título: Desejo de status
Autor: Alain de Botton
Tradutora: Ryta Vinagre
Páginas: 304
Preço: R$ 39,50
Editora: Rocco

Status, para quê?

Com Desejo de status, o filósofo suíço Alain de Botton mais uma vez nos premia com uma obra de erudição acessível, desta feita com vários referenciais teóricos, nem tão filosóficos de obras anteriores como Movimento romântico ou As consolações da filosofia. O foco deste livro é o status, a posição na sociedade ou como as sociedades ao longo da história elencaram o que era e não era importante. Ao longo das 304 páginas da brochura, Botton dá o antídoto para a hierarquização boba dada basicamente pela riqueza e bem-sucedismo. Os exemplos ao longo do livro são muitos. Para cada Aristóteles dizendo que os homens são livres ou escravos pela natureza, as resignações de Santo Agostinho ou o darwinismo social de Herbert Spencer, Botton devolve com Rousseau, para qual a maior riqueza era ter o suficiente, ou com o pintor Jean-Baptiste Chardin e escritora Jane Austen, que preferiam se centrar nos desgraçados, nos desfavorecidos, condenados pela sociedade meritocrática. Na soluções apontadas por Botton para tratar o problema do desejo de status, estão como sempre a filosofia, a arte, a política, o cristianismo e a boemia. Na filosofia, uma das Meditações, de Marco Aurélio, é invocada: “[Sua decência] não depende do testemunho dos outros”. George Bernard Shaw, John Ruskin e Michel de Montaigne justificam a solução política, enquanto que para o cristianismo sobrou a missão de valorizar o divino deixando a luta de classes terrena num segundo plano. Aos boêmios e as suas teorias de contrariar como foi o caso dos surrealistas e dadaístas, Botton dá a mensagem de ir contra a corrente. Todas as cinco soluções, segundo ele: “dão legitimidade a todos que não estão dispostos a seguir obedientemente as idéias dominantes de status elevado”

sábado, junho 03, 2006

primeiro capítulo inédito de A Terra do Fim

A terra do fim


Cheio de incertezas, ele desembarcou daquele avião da Finnair que fazia o vôo Helsinki- Rovaniemi. No vôo, teve uma primeira impressão de um pouco de artificialidade que emanava daquele povo pela primeira vez apreendido em seu olhar e sua observação acurada. Aquela viagem de um mês ao país mais conhecido pelo seu bom velhinho, o Papai Noel, que mora no imaginário infantil, seria mais do que uma experiência. Seria a sua própria vida, acondicionada em um baú e que lhe desvendaria segredos acerca de si e das outras pessoas.
Ricard nunca se obrigou a enfrentar esta comunicação com os outros povos. No máximo, se atinha aos sul-americanos e aos estadunidenses e tão somente. Neste dia primaveril, quando desembarcou por volta das dez da noite no aeroporto de Rovaniemi, distante 10km do centro da cidade capital da Lapônia, e ainda viu o sol brilhando, sentiu alguma coisa de muito diferente crescendo dentro de si. Não podia conter. A língua falada entre ele e as pessoas que o recepcionaram era o inglês pausado. Mas o entendimento ainda era na base da frieza, até porque a temperatura não passava dos dois graus centígrados. Ele cumprimentou a todos, olhou bem, se despediu do grupo de brasileiros que ficaria em outras casas e partiu para uma jornada completamente nova.
***
Nunca freqüentei uma sessão espírita, mas parece que um morto quer falar comigo. Estou aqui curtindo uma depressão danada, sem grana para pagar todas as contas que se sobrepõem à minha liberdade. O que evoca esta voz é algo sobre uma viagem à Finlândia. É difícil acreditar, mas pelo que sei não conheço ninguém que tenha estado por lá. Acho que vi uma reportagem no jornal sobre um grupo de brasileiros que esteve naquele país escandinavo. Mas e se a voz já for traduzida e quem estiver querendo falar comigo, seja um europeu ou até um indiano, como vou fazer para saber. Bom, por enquanto vou tentar tomar este banho, porque a vontade de não levantar desta cama está muito grande. Não tomo Prozac e acho que vou ter que tirar uma força extra do meu plexo e saltar como se esta cama fosse elástica. A voz apenas me diz algo como nakemin, que deve ser uma palavra finlandesa.
***
No carro, um Volvo, dentro do qual nunca havia estado, nem no Brasil, fui apanhando as palavras em inglês de Serkku, meu anfitrião, como se fosse jabuticabas em beira de estrada, meio anestesiado pelo aquecimento que emanava do assento no estofado do caroneiro, que no caso era eu mesmo. A cidade congelada, os dois rios Kemijoki e Ounasjoki mais ainda. Joki é rio em finlandês. O fato de dizer yes a cada asserção de meu pai provisório me possibilitava um tempo para descansar a cabeça de 25 horas de viagem, com as devidas conexões em São Paulo, Londres e Helsinki. Ao chegar no apartamento dele, o forte cheiro de salmão cru me invadiu as narinas. Um cheiro que nunca mais iria esquecer, bem como o gosto.
***
Ah, meu Deus. Esta internet com este barulhinho chato de conexão discada. Estou ficando irritado igual àquelas pessoas do comercial de tevê. Quero banda larga. E o pior é que site internacional é muito difícil, mas eu preciso tentar um página sobre palavras em finlandês. Quem disse nakemin para mim, não vai me fazer de bobo, mesmo que seja alguém que me use telepaticamente. Está cheio destes lunáticos por aí. Tem aquele presidente dos Estados Unidos. É melhor eu me calar se não ele invade o meu apartamento depois que acabar com o Oriente Médio. Bom, vamos ver, vou tentar pelo yahoo. Hã, Hã. Acho que está aqui. Busca: vou escrever dicionários finlandês. Acho que vai dar certo. Ora, bolas, caiu a conexão. Merda. Vamos de novo. Agora, o barulhinho parece bálsamo. Como as coisas mudam conforme a necessidade. Está aqui dicionário do finlandês para sueco, inglês e espanhol. Vou tentar para inglês. Bem aqui, vou escrever rapidinho como um esgrimista do teclado. Pronto, pronto, pronto. Nakemin. Não. Talvez um ka a mais. Não. Um eme a mais. Não mesmo. Quem sabe um i duplo. Assim, melhorou. Ah, a palavra é Näkemiin e significa good-bye, é um até breve. A voz vai voltar. Acho que vou sair para dar uma passeada. Porto Alegre ensolarada parece cenografada para filmes de paraíso.
***
Comi o salmão, troquei algumas palavras ainda mornas com os meus anfitriões e fui dormir, cansado que estava da viagem. A cama preparada para mim estava rodeada com mais de cinco mil livros. Um pedacinho de céu. Pena que a maioria era em finlandês, mas os livros de arte eram em inglês. Sorte. Acordei uma só vez na madrugada e vi como o dia clareava cedo, lá pelas três e meia da manhã. O reflexo do rio Kemi alvíssimo pelo gelo dava uma pureza e paz a tudo e era fácil ouvir o silêncio naquele lugar. O despertar daquele domingo foi com uma voz pouco familiar chamando o meu nome Ricca foi o que Serkku disse, nome que sua mulher Minä repetiu quando nos demos bom dia. Deixei estar umas duas ou três vezes e depois dei uma pequena corrigida. Era melhor assim. A primeira atividade da programação do nosso grupo de intercambistas profissionais da nossa ONG Parcerias Hemisféricas era a visita a uma unidade de um quartel na cidade de Sodankylä e depois a um observatório geofísico. Meteorologia e programa espacial poderiam ser bons inícios para aquilo que queríamos em solo escandinavo. Eu conversava bastante com Paloma, Mauren e Catarina e também com o líder do grupo Evandro Gomes. Todos tinham preocupações sociais e ecológicas e faziam muitas perguntas sobre a situação do país naquele veículo utilitário que os levava por aqueles 80km de distância e também de volta. Nos momentos de relaxamento, cada povo aproveitava para falar a sua língua. Depois do almoço e em uma parada na estrada, tomamos um café, que nos disseram ser do Brrrasil, explicando que, além do nosso país, eles importavam da Colômbia, Porto Rico e Vietnã. A de volta foi um eterno coffee break. Numa das conversas cruzadas. a Fórmula Um se sobrepôs, pois Rubinho Barichello disputava prova em Ímola e Kimi Räikkönen também estava no páreo. O automobilismo gerando conversas por homens de duas nações diferentes, já que as mulheres tricotavam palavras, cochichos, risos e esfregavam as mãos para aquecê-las, mesmo que já estivessem com luvas.
***
Trabalho num sebo de livros na rua Riachuelo. Deveria ter rinite alérgica adquirida. Nunca li nenhum autor finlandês. Perguntei para o meu chefe se ele conhecia algum. O nome de Mika Valtaari foi citado. Diz que escreveu O Egípcio. Eu já vi esta obra aqui. Lembro que li as primeiras páginas, como sempre faço com a maioria dos livros, mas nunca soube nada sobre o autor e nem lembrava dos livros. Minha vida poderia ser considerada tediosa, isto para quem gosta de trabalhos na rua e atividades quase desportivas. Para mim, uma biblioteca e uma livraria são templos. Deveríamos fazer a genuflexão dos católicos e orar a cada vez que entrássemos dentro dos locais que abrigam os livros, que, como diz um freqüentador do sebo, seu Toninho, são a casa da palavra. Aquela voz brasileira com pitadas de finlandês me abandonou desde o fim-de-semana passado quando decidi correr e depois jogar um futebol, coisas que não fazia há tempos. Corpo aquecido, mente cansada. O ditado vale. Estou com saudade. Vou ver se procuro uma sessão espírita. Lá vem o seu Manoel. Ele vai querer Os Trabalhadores do Mar, do Victor Hugo, a segunda edição em francês, que nós ainda não temos. Vou ter que compensá-lo, com umas coisas de Paul Valéry, que o meu chefe, seu Anton, conseguiu. Temos raridades em inglês e francês, mas não ficam na estante. São só para clientes especiais como seu Manoel, seu Toninho e seu Andreazza. Se der tempo, vou folhear a obra de Mika Valtaari. Internet só de noite em casa. Aqui ainda estamos no paleolítico. Sebo não é carne, mas é suculento.
***
Depois de muitas conversas em inglês e de acostumar o ouvido ao finlandês e ainda por cima conhecer o novo país, dormir ficou difícil tamanho o grau de excitação. O sono foi curto, pois às três da manhã um bando de albatrozes anunciava a manhã vindoura. Como o computador da casa dos meus anfitriões ficasse longe, saquei de caneta e papel e comecei a colocar na palavra as impressões da Finlândia em forma de um artigo/ensaio, intitulado De Carona na Estação Finlândia, a mesma já abordada em livro por Edmund Wilson.
Colaborador de uma revista semanal de circulação nacional e escrevendo artigos para jornal, além de prestar assessoria de imprensa para eventos culturais, entidades ecológicas e outras ongs, o texto estava sempre jorrando da minha pena, quando possível da percorrência veloz dos dez dedos no teclado. Levantamos cedo, tivemos uma agenda cheia, reuniões para futuras parcerias Brasil-Finlândia e visitas a locais turísticos e de interesses profissionais para o nosso grupo. Era uma segunda-feira. Eu e a outra colega jornalista, Mauren, visitamos o principal jornal da Região, o Lapin Kansa, algo como Lapônia Popular. Um jornal formato standard com tiragem de 45 mil exemplares e edições médias de 24 páginas em dias de semana e de 36 a 48 páginas nos finais de semana. Mauren e eu fomos dar uma volta por algumas ruas de Rovaniemi, tentar conhecer a igreja Luterana, preservada do bombardeio de retaliação dos alemães em 1944, exatamente por ser herança do reformador do Cristianismo. Bombardeio que destruiu a cidade, deixando uma tarefa muito grande de reconstrução para as últimas três gerações que viveram até este ano de 2002. Vimos muitas pessoas com alta média de idade. A expectativa de vida é de quase 78 anos. A minha transformação parecia já estar acontecendo.
Ricard Moreira, 32 anos, jornalista, residente em Porto Alegre, sentia uma espécie de gastrite doce dentro de si. Não sabia o que ocultava. Só sentia que esta diferença se manifestava desde o início da viagem, já no aeroporto de Porto Alegre, quando despediu-se da namorada Iria, aos beijos e um choro embargado. Primeira viagem pelo Parcerias Hemisféricas. Muitos desafios e pouco tempo. Um frio de zero graus na rua. Tempo nublado. Meio-dia em Rovaniemi. O sino toca funebremente. Alguém morreu na terra do Papai Noel.

início do livro "Amor sobre Tela" (inédito)

“...quero dizer outra coisa, quase inacessível: que a ‘alma’ (o meu eu-não-unhas) é a alma de um corpo que não existe. A alma talvez tenha empurrado o homem para além da sua evolução corporal, mas está cansada de empurrar e, agora, segue sozinha para a frente. Apenas dá dois passos e a alma se quebra, ai, porque o seu verdadeiro corpo não existe e a deixa cair, plaf. A infeliz volta para casa, etc., mas isto não é o que eu enfim.’’
JULIO CORTÁZAR, O Jogo da Amarelinha


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DEPOIS DO FIM, HÁ A DÚVIDA

Depois que as histórias de amor acabam é que os envolvidos passam a perceber a validade de cada detalhe, a importância de cada palavra não-dita, de cada angústia emudecida pela dúvida do desagrado, do inoportuno ante as dificuldades de se manter uma história a dois. O par é sempre penoso de se formar e facílimo de se destruir. Quem não tiver sofrido uma história de amor, que atire a primeira pedra e quebre este espelho narrealtivo amoroso em milhares de cacos. O lodo da discórdia, esta comandante tirana, apartando um casal para cantos opostos do ringue. O gongo soando em cada grito ou gesto brusco. Poucos podem entender sem viver uma briga de e por amor. E quem já viveu, sabe do que estou falando. Após o fim decretado ou o finalmente realizado, apenas o silêncio é o cozinheiro mexendo levemente na panela de ferro esperando aquela fervura toda se dissipar e o resultado ser um caldo pessoal de solidão e de consolo nos amigos e parentes. Cada um consigo e só sós conseguem. As palavras durante o embate ficam desconfortáveis na balança do pensamento, preferem se espatifar no ouvido alheio, numa erupção dedicada aos pontos fracos do outro.
Olivares e Vera, o que vocês fizeram com a vida de vocês? Poderiam me dizer. Sou aquele narrador insistente, que me envolvo com a história a ponto de estar umedecendo os teclados deste computador, ao chorar por saber de tudo o que se passou com esta dupla, sensibilizado porque na minha vitrola há um Kitaro insistente. Gostaria de contar a bela estória de amor jamais vista (clichezão, hein!). Temo que não será nada disso, mas não se iludam. Qualquer história humana é bela. Vou tentar convencer-vos disso. Não custa tentar. Podia estar numa poltrona estofada, comendo uma pipoca, amendoim, pizza, chocolate ou torrada, vendo um DVD, mas aceitei este desafio. Venham que voz conduzirei:

Olivares acorda só, com ondas caudalosas lhe irrigando as panturrilhas na praia de Garopaba, em Santa Catarina. A madrugada está em seu meio. A lua é luxo de luz na arena da orla. As suas mãos são dois escorpiões à procurar de um outro corpo que ali deveria estar. A sombra das mãos remetendo à imagem de uma pomba. Vera voara? Há poucas horas estavam em um luau particular. A marca daquele corpo na areia fofa era a única presença agora. Levantou-se de pronto. Sentiu-se tonto. Em pé, esfregou os olhos com força e nada à vista. Audiu um grito. Mesmo cambaleante, correu até o local do brado e viu um homem de cabelos grisalhos com um rabo de cavalo mediano, camisa floreada para fora da cintura e calça branca tentar estuprar uma mulher. Primeiro alívio: não era Vera. Juntou a força com a coragem etilizada e gritou muito, dizendo que iria matar o desgraçado, que fugiu. Luzes às casas. Curiosidade. Olivares correu na direção da mulher, alertando que veio ajudá-la, antes que ela voltasse a exalar medo. Olivares andante, o grisalho em fuga e a mulher em schizo e logo em allegreto. Perguntou se ela estava bem.

- Sim, não se pode confiar em mais ninguém nesse mundo. Nós ficamos juntos esta noite e bebemos umas caipirinhas, mas ele insistiu em transar comigo e começou a ficar pegajoso.
- O que são caipirinhas? – perguntou Olivares, que era português de Coimbra até os ossos, com infindáveis dúvidas vocabulares na transposição de Oceano Atlântico.
- São as bebidas em que misturamos cachaça com limão e açúcar, juntando tudo com uma colher de pau ou pilão.
- Ora essa! Parece-me interessante.
- Pode ter certeza.
- Não me fiz apresentar. Sou Olivares. Sou de Portugal, deves ter “prcebido pelo sutaque” .
- Meu nome é Catharina, com mesmo th que na língua inglesa provoca aquele chiado de língua incisiva entre os dentes, Caffferina – disse para aguçá-lo - Que raro. Estamos cheios de turistas aqui em Santa Catarina, mas portugueses não são tão comuns. Temos forte influência açoriana aqui neste Estado – complementou.
- Queres que eu te leve até algum lugar? Ele não te machucou? – emendava questões.
- Não, tudo bem. Meu carro está aqui perto. Foi só o susto.
Os interlocutores recentes foram caminhando juntos, descompassados, e chegaram até o carro da rapariga. Ela pegou a chave na bolsa, desarmou o alarme e antes de entrar no carro fez menção de despedir de Olivares, agradecer por sua bravura e gesto de segurança. Porém, ele alheou-se ao ver a marca funda de pneus na areia, onde estava estacionado há pouquinho – na sua noção agora distorcida de tempo e espaço - o carro que locaram em Porto Alegre há duas semanas. O Ford Ka já fôra. Com ele viajavam também os sonhos da vida em par, daquela que seria uma noite ímpar, 1, 2, 3 e já, como na aposta de criança.

A mulher salva não foi seu alvo. Sequer reparou nos cabelos curtos de Catharina, cortados rente. A nuca à mostra com uma tatuagem de São Jorge estilizado. Linda, pelo menos para este narrador que vos fala. O corpo, uma taça de champanhe transbordante. Olivares ao seu lado, desolado.
- Bom, acho que vou ficando por aqui, o meu carro está mais adiante – inventou desculpa.
- Que é isso, eu te levo até lá. Se não te importares. Apesar do choque, estou bem. Você é um homem diferente.
- Como? – ele pediu para que ela repetisse, se amparando na incompreensão entre língua mãe e filha, a ganhar tempo e pensar no que realmente faria nos próximos infinitos minutos. Tinha que chegar rápido à pousada em que estavam hospedados.
Aceitou a carona. Era madrugada de quinta para sexta-feira, naquela semana em que poucos trabalham no Brasil, situada entre o Natal e o Ano Novo, no final do ano de 1999. Era o término de milênio, o de mentirinha, quando os calendários do turismo transpassaram o da razão, que tudo se passara.

O cargo de serial killer não remunera bem

Estavam lá todos eles. Riam, falavam alto, discutiam não sei o quê, mas também não me interessava. Comiam massa à bolognesa ou a guisadigno. Só havia aquela história a martelar a minha cabeça. Era uma onda de crimes em série numa descrição maestrina de Truman Capote, o precursor do jornalismo literário, o new journalism. Caixões Entalhados à Mão. Lembram de A Sangue Frio. Os crimes em série. Muitas perguntas sem resposta. Uma estava pulsando agora. O que seria o fator motivador de uma pessoa até o momento de começar a cometer crimes em série?
A psicopatia e a premeditação eram estados de consciência bem estranhos para minha persona. Neste exato momento, eu não cometeria um crime, em hipótese alguma, nem por legítima defesa, mas o que dizer do futuro. De um acesso de fúria. Uma noite mal-dormida, seguida de sapos engolidos durante o trabalho. Como eu engendraria este tipo de crimes. Seriam com bilhetes, pois o texto é a minha morada. Enigmas ou charadas. Fitas com letras de tango ou apenas o instrumental do jazz ou clássico. Imagine uma pessoa que será assassinada, recebendo um Ipod com músicas do Charlie Parker ou de Richard Wagner, com um bilhete recheado de citações de Edgar Allan Poe, Julio Cortazar ou Jorge Luis Borges. Seria no mínimo hilário. O detetive aquele dos filmes, vivido por Bruce Willis ou Denzel Washington iria contratar um crítico literário e um músico para juntar as peças do quebra-cabeça.
Depois, eu teria que fazer a lista de quem eu mataria, nos meus dias como psicopata. Bom, acho que o Neto, comentarista de tevê e ex-jogador do Corinthians e do Palmeiras. Tem também o Diogo Mainardi, que é tão odiado, que poucos desconfiariam de mim. Aumentaria as chahces do meu álibi dar certo. Estava no cinema vendo um filme argentino do Juan Jose Campanella ou do Fernando Solanas. No rádio, quem sabe poderia dar um fim no Paulo Sant´anna. Claro, o motivo é que ele é gremista, mas isto por si só seria muito pouco. Eu deixaria ele de fora. Os não conhecidos também engordariam a lista, mas como são ignorados não valeria a pena cita-los agora. Eu não tenho inimigos, a menos que eu conheça. Tenho algumas ex-mulheres, mas não as quereria matar.
Muito bem, mas acho que depois deste texto começo a chegar a conclusão de que o cargo de serial killer não remunera bem e não tem lá muita graça, apesar da engenhosidade dos enigmas com Parker e Wagner. E além disso, tem também o quinto dos dez mandamentos, a tábua recebida por Moisés, que não é aquele zagueiro do Vasco e do Bangu, mas o profeta o que abriu o mar vermelho, que também não é a torcida do Inter. Não matarás. Então não matarei. Apenas colocarei um ponto final, pois estes meus apontamentos devem ter apenas uma página.