Críticas de literatura (textos) e cinema (telona) e também de teatro e música, quando necessário. Artes visuais somente para fruição. Alguma entrevista mais especial também terá vez.
terça-feira, maio 11, 2010
Que os anjos digam Amém ao Armazém!!!
Estou escrevendo ainda sob o impacto de assistir ao espetáculo Inveja dos Anjos, da Armazém Companhia de Teatro, dentro da programação do Palco Giratório na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. Na hierarquia dos anjos proposta por Rainer Maria Rilke no texto de apresentação, posso me lembrar dos seres alados de Wim Wenders para dizer como este processo construído pela companhia com seus dramaturgos Paulo Moraes e Maurício Arruda Mendonça nos faz acessar a zonas remotas do sentimento e da reminiscência.
Um trio de amigos recordando. Um trilho de trem que viaja ao alto, traz e leva pessoas e consigo os sentimentos. Um escritor, Tomás (Ricardo Martins) que quer queimar todas as suas anotações com títulos tão criativos quanto vagos: Vestígios de Afeto é um exemplo. Os personagens desta estrutura onírica, quase fabular, nos fazem recordar da Alice Através do Espelho, o texto de Lewis Carroll (o grupo prefere a dramaturgia própria, mas já montou este texto). O escritor tem uma filha, Natália (Verônica Rocha) e agora não quer queimar nem os escritos e nem tampouco consegue negar o rebento.
Uma garçonete, Cecilia (Patrícia Selonk) não conseguiu mais amar. Um mágico fugiu de sua vida, usando o seu principal recurso, o ilusionismo de entrar no trem da existência e sumir num rastro de liberdade. Uma filha, Luiza (Simone Mazzer), que viu a mãe, Branca (Simone Vianna), matar o pai e agora implora para que a sua matriz se vá, enquanto ainda faz milhares de bolos para ela, matando a sua sanha de loucura e fome. A mãe dança com o paletó do pai morto. O carteiro, Eleazar (Marcelo Guerra), que lê e seleciona as correspondências que devem ser entregues, adiando algumas que trazem notícias inesperadas. São tantas as imagens e situações que quase nos engasgamos todos. O personagem mágico de Rocco (Thales Coutinho) parece dar o tom da narrativa, pois tudo parece um passe de ilusão. Rocco e Cecília protagonizam os momentos de maior afeto, tensão, recuerdos e também, por que não, de regozijo na intimidade, como quando ela diz que pensou em 100 maneiras de dizer que não o queria mais, botando-as para fora quando ele retorna, após 15 anos.
O diretor Paulo Moraes explica que o mote era o esfacelamento da memória e que os atores desenvolveram as suas situações, escrevendo e atuando a partir de um tema. O tema é fragmentar a memória para recordar que a existência é vã e também tão linda quanto as brincadeiras de Natália ou as mágicas de Rocco, ou o fogo que consome os livros de Tomás. A fumaça do afeto.
Os anjos devem estar dizendo: “Amém ao Armazém!”, pois o anjo existe para nos guardar e nos lembrar um pouco a nossa humanidade de asas quebradas, como as da estátua do centro da cidade onde todos os personagens moram, que como todas as cidades da nossa recordação estão decadentes. Amém também a cenografia de Carla Berri e Paulo Moraes, que mostram a decadência das paredes descascadas e o trilho que desloca o nosso ponto de visão, criando geometrias novas. Amém a Maneco Quinderé o homem que dá a acuidade luminescente à locomotiva, que cria momentos de rara poesia com sua luz sobre trilhos e outras invenções como a luz vermelha tal qual um carrossel. A trilha sonora de Ricco Viana compõe este panorama onírico, incluindo de Radiohead a Beatles, buscando o foco íntimo, pré-emotivo e preciso do espectador. Por tudo isso, não tenho inveja dos anjos. Só tenho louvores a eles e ao Armazém que nos vende sonhos, narrativas tocantes e o acesso ao mais íntimo que há em nossas viagens para dentro da alma recordante, alegre por voltar, por ir e retornar pelos trilhos da vida.
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