O surpreendente filme “Shame”, do diretor inglês Steve McQueen (“Hunger”) consegue nos transmitir toda a densidade da compulsão sexual como válvula de escape de um problema de consciência insolúvel. Dei o título de tocata e fuga a este filme não por acaso, pois uma das primeira s e mais marcantes músicas do filme é “Prelude & Fugue”, de Johann Sebastian Bach, executada por Glenn Gould. O filme flerta com o estado de arte para nos contar, por vezes de maneira crua, quase pornografia extrema, o drama deste homem David (Michael Fassbender) e de sua compulsão.
A trilha sonora, aliás, deixa de ser coadjuvante na história, para marcar o peso e a suavidade de alguns momentos. A assinatura é de Harry Escott (de Menina Má.Com e tem como um dos seus pontos altos a interpretação lânguida de Carey Mulligan no papel de Sissy, a irmã cantora e desajustada de David, para “New York, New York” num clube de jazz nova-iorquino. A trilha tem ainda as clássicas "My Favorite Things", de John Coltrane, e "Let´s Get Lost", de Chet Baker.
Desde o início sabemos que David, apesar de bem-sucedido na sua carreira profissional, não se adapta a uma vida considerada normal, com relacionamentos estáveis. O sexo para ele é a tocata e fuga. O computador do trabalho está com vírus após tanta pornografia, seu notebook está aberto com webcams e prostitutas entram e saem de sua casa, como alguém da família. O que não sabemos é os porquês da sua vida chegar até esse ponto, já que ele é um cara boa pinta, consegue a mulher que quer na hora que escolher.
Todo o acesso dele à pornografia é tratado por McQueen com doses de ultrarrealismo. A câmera é fixa, as pessoas passam na frente dela, as imagens de Nova York são obras de arte, o tom é soturno, pesado e ao mesmo tempo lírico. A virada do personagem é quando a irmã Sissy chega a sua casa. Ela vai ficar uns dias e eles tem uma relação forte, que parece ser mais do que a fraterna, mas não está explícita. Ela já tentou cometer o suicídio várias vezes. As consciências deles são dois contêineres. Carregam o peso dos seus mundos.
David se descontrola, tenta estabelecer uma relação duradoura, varrer a pornografia, o lado sexaholic para baixo do tapete, mas não consegue. A irmã o perturba. Na primeira noite em NY, Sissy canta “New York, New York” e emociona David, mas ela transa com o chefe dele. Descontrolado, David corre pelas ruas da Big Apple no meio da madrugada, em uma das belas cenas do filme, quando a cidade mais cosmopolita do mundo é acompanhada por uma câmera que segue o atleta madrugador.
David desce ao submundo. Sissy sente que está fazendo mal ao irmão e se deprime. O filme acompanha os desajustes e a relação conturbada, possivelmente incestuosa (a resposta está no filme) entre os dois. O filme não dá resposta, cria jogos e se torna numa das surpresas agradáveis do cinema em 2012, pela sensibilidade estética a uma Nova York que encanta e oprime e um tratamento realista a um tema que tanto aflige nos dias de hoje, de internet, a compulsão sexual e também a relação de tensão sexual entre irmãos. “Shame”. Guardem este nome e compareçam ao cinema com a mente aberta, sem malícia, sem tietagem com Fassbender ou Carey Mulligan.
Crédito da foto: Paris Filmes / Divulgação
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