quinta-feira, março 28, 2013

A nau dos encalhados




O cinema português está mais prolífico que nunca e sobrevive além do seu incansável ícone Manoel de Oliveira, de 104 anos. Quando estive em Portugal entre novembro e dezembro de 2012, eram cerca de 10 lançamentos de filmes genuinamente portugueses, como "Operação Outono" e "Deste Lado da Ressurreição ainda inéditos no Brasil e "Aristides de Sousa Mendes - o Cônsul de Bordéus", este exibido em première na 9ª Seleção de Filmes Bourbon, realizada pela Panda Filmes, em novembro de 2012. Novamente, a Panda Filmes nos coloca em contato com produção portuguesa, co-produzida com Espanha, Brasil e Rússia. "América", dirigido por João Nuno Pinto, é um filme de náufragos, pessoas sempre à deriva, que vivem de pequenos golpes, principalmente no que tange ao acolhimento das centenas de imigrantes que desembarcam na nova América que é Portugal, um caldeirão de culturas e uma das portas entradas mais tranquilas da Europa rica na atualidade, já que França, Espanha, Itália e Alemanha apertaram um pouco o cerco aos imigrandes. O diretor João Nuno Pinto o define como um filme de "encalhados". A obra é baseada no conto "Criação do Mundo", da autora portuguesa Luísa Costa Gomes, co-roteirista do filme junto com João Nuno Pinto e Melanie Dimantas.



Com uma poética visual bastante própria e uma trilha sonora que gira entre o lírico e a tensão, "América" nos coloca na periferia de uma pequena cidade litorânea portuguesa, com a narrativa seguindo a voz em off de Liza (Chulpan Khamatova, de "Adeus, Lênin", melhor atriz da 11ª Semana de Cine Iberoamericano de Villaverde, Espanha, uma jovem imigrante russa, casada com um português, Vítor (Fernando Luís, ator carismático e que empresta uma grande organicidade ao papel), de quem tem um filho, Mauro (Manuel Custódia). Vítor é um trambiqueiro, como chamamos aqui no Brasil. A sua sina é enganar velhinhas e quando muito tirar 200 euros de algo ligado a previdência e a um dinheiro que está para chegar. Mauro, de uma hora para outra, resolve não falar e se comunica com olhares e com brincadeiras. Liza cuida da casa e da avó de Vítor, que se recusa a comer, mas que demonstra um carinho enorme por Liza, chamada de Popova por Vítor.

A primeira virada do filme se dá quando a espanhola Fernanda (María Barranco), ex-mulher de Vítor, reaparece propondo um negócio de falsificação de passaportes para os imigrantes ilegais russos, ucranianos, angolanos, brasileiros, entre outos. A partir daí, Liza perde o controle sobre a casa e o local passa a ser ponto de passagem para inúmeros imigrantes de várias raças e nacionalidades. Todos náufragos ou encalhados à procura de uma terra realmente firme. Com Fernanda, aparecem dois tipos especialmente estranhos, o espanhol Tolentino (Fernando Maestre) e o brasileiro Matias (Cassiano Carneiro, que atuou em filmes e novelas no Brasil como "Mandacaru"). Os dois dão o tom de humor necessário a um filme de erros. Enquanto Tolentino é o próprio tragicômico espanhol, parecendo egresso de um filme de Almodóvar, Matias dá a brasilidade e aquele humor ácido. Uma das principais piadas do filme é quando eles estão organizando a fila para encaminhar os passaportes falsificados e Matias pergunta: "Quem é africano? Então vai para o fim da fila. E quem é brasileiro? Vai para trás dos africanos". Outra piada que funciona é quando alguém pergunta o nome daquele artista famoso de Hollywood e alguém responde: "É o Denzel Washington" e ouve: "Não, é o King Kong".



A trama está cheia de viradas e acompanhamos Liza tentando fugir daquela realidade de encalhados, sem nunca obter sucesso, enquanto a situação fica cada vez mais crítica. Todos dependem do artista do grupo, o velho Melo (o veterano Raul Solnado, que faleceu no período de pós-produção do filme em agosto de 2009 e a quem a obra é dedicada) e também do cérebro dos golpes que é Paulo Armando (Dinarte Branco), que tem ideias para golpes virtuais, mas é um incompreendido. Para piorar, Liza se envolve com um ortopedista ucraniano Andrei (Mikahil Evlanov) e Vítor tem uma recaída com Fernanda. O filme ainda nos reserva cenas belíssimas da cidade litorânea (a locação é na Cova do Vapor, localizada no distrito de Setúbal, próximo de Lisboa, na junção entre o rio Tejo e o Oceano Atlântico), dos labirintos de ruelas onde Liza e Vítor moram, a força da chuva no outono/inverno português e algumas cenas meio Fellinianas, como um barco que encalha no teto da casa que é o centro da trama. A fotografia foi vencedora do festival Indie Lisboa, em Portugal. Além disto, a máfia russa também aparece, pois na vida real ela existe e está disseminada por toda a Europa, após o fim da União Soviética.

Um filme belo, bem-humorado e tenso ao mesmo tempo, que nos leva a pensar numa tragédia iminente, pois os fios que ligam os personagens a uma vida normal são muito frágeis. A mão do diretor está sempre presente, provando que João Nuno Pinto, que havia dirigido somente o curta "Skype Me" (2008) merece toda a nossa atenção daqui por diante, por mostra uma trama com tensão constante, belas imagens, bons atores e com uma narrativa que nunca perde o pique e o foco. Pinto recebeu dois prêmios de Melhor Diretor pelo filme no 15º Festival Sofia de Cinema Independente 2011, na Bulgária e no 5º Festival Cineport, no mês de setembro de 2012, em João Pessoa (PB).

     
                                           
 “AMÉRICA”
PRODUÇÃO: Espanha, Portugal, Brasil e Rússia,
ANO: 2011
DURAÇÃO: 111 minutos
DIREÇÃO: João Nuno Pinto
GÊNERO: Drama
ELENCO: Chulpan Khamatova, Fernando Luís, María Barranco, Raul Solnado, Dinarte Branco, Cassiano Carneiro, Francisco Maestre, Mikhail Yevlanov e Jurij Ickov

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